quarta-feira, maio 02, 2012

Debate

A França vai viver, na noite de hoje, um daqueles momentos que a sua história política irá registar para sempre: o tradicional debate televisivo entre os dois candidatos apurados para a segunda volta da eleição presidencial. Digo tradicional, mas não digo obrigatório, porque Jacques Chirac se recusou a esse ritual quando, em 2002, ficou surpreendentemente frente-a-frente a Jean-Marie Le Pen. 

Este tipo de debates políticos tem, em Portugal, uma tradição mais recente. Quem tem idade, ou interesse por isso, lembra-se bem do confronto, em novembro de 1975, entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, num contexto político muito tenso, se bem que não eleitoral. Essas quatro horas de discussão, ficariam marcadas pela expressão, que, a partir daí, se tornou clássica, várias vezes repetida pelo líder comunista -  "Olhe que não! Olhe que não!" -, quando Soares acusava o PCP já não sei bem de quê, em concreto. Dos restantes debates presidenciais ou entre candidatos ao lugar de primeiro-ministro, guardo naturalmente algumas recordações fortes, embora confesse que nenhuma delas, sem exceção, integra as minhas memórias admirativas.

Neste capítulo, a França tem momentos que ficaram para sempre no imaginário coletivo. Em 1974, Mitterrand ficou claramente desestabilizado quando Giscard d'Estaing lhe disse: "vous n'avez pas le monopole du coeur", referindo-se àquilo que alguma esquerda considera ser a sua superioridade moral. Sete anos mais tarde, na desforra política que o levaria finalmente ao Eliseu, o líder socialista, ao ser acusado de ser "l'homme du passé", respondeu a Giscard que, nesse caso, então ele era "l'homme du passif", atendendo à situação económica que herdava. Mitterrand, na sua recandidatura em 1988, seria ainda autor de uma "blague" deliciosa, quando Jacques Chirac, seu primeiro ministro num governo de "coabitação" (presidente de cor política diferente do executivo), de quem era opositor na eleição presidencial, afirmou que os cargos que ambos assumiam deveriam ser esquecidos durante o debate, razão por que iria passar a tratá-lo simplesmente por "senhor Mitterrand". A resposta do socialista foi tão fulminante - "vous avez tout à fait raison, monsieur le Premier ministre!" - que Chirac ficou afetado para o resto do confronto, chegando, a certo ponto, a dirigir-se a Mitterrand como... "monsieur le Président"!

Logo à noite, esperam-nos duas horas e 40 minutos de debate intenso. A negociação entre as candidaturas, entre outros pormenores, decidiu que o ambiente do estúdio esteja a 19ºC. Mas, pelo que tenho ouvido e sentido, a temperatura vai subir bem mais na casa dos franceses.  

(Em tempo: não esperem que este blogue opine sobre quem ganhou ou perdeu o debate, claro!)

terça-feira, maio 01, 2012

Sondagem

Neste tempo em que a França vive mergulhada numa obsessão de sondagens (que, quem quiser, pode acompanhar, clicando no alto, à direita, neste blogue), resolvi fazer as minhas, mas, neste caso, quanto à percentagem de espaço que irei ter para viver, na minha casa em Portugal, quando por lá chegarem todos os meus livros.

A imagem junta antecipa o cenário que me espera.

segunda-feira, abril 30, 2012

A rainha e os ovos

No blogue Ié-Ié, Luis Pinheiro de Almeida publicou o plano da mesa do jantar de Estado que, fez ontem precisamente 19 anos, o então presidente Mário Soares ofereceu à rainha Isabel II, na nossa embaixada em Londres.

Estive presente nesse jantar, não por qualquer mérito próprio, mas porque era então o "número dois" da nossa missão diplomática na capital britânica, tendo a meu cargo a coordenação, substantiva e adjetiva, dessa mesma visita.

A deslocação de Mário Soares ao Reino Unido foi um trabalho interessante, mas algo delicado. No plano luso-português, foi necessário muito bom-senso, por forma a conseguir acomodar algumas sensibilidades políticas internas, atitude que, à época, os frágeis equilíbrios políticos interinstitucionais aconselhavam. Na ordem externa, havia que ter em conta que os britânicos não são nada flexíveis na montagem de uma deslocação "de Estado", porque tendem a impor as suas regras, tidas quase por consuetudinárias. Neste tipo de visitas - e, na minha carreira, fui responsável por algumas - as embaixadas vivem, quase sempre, "esmagadas" entre os dois serviços de protocolo, acabando por ser uma charneira onde ambos os lados descarregam as suas diferenças e vontades. 

A anteceder uma visita de Estado, várias semanas antes, a capital envia aos postos uma missão preparatória, que desejavelmente deixa os principais aspetos da visita já encaminhados. Dessa vez, os colegas vindos de Lisboa eram chefiados pelo próprio chefe do protocolo de Estado, um funcionário superior do MNE. 

Na sala de reuniões da nossa embaixada em Londres, o "staff" da embaixada que estava envolvido na visita e o grupo vindo de Lisboa discutia, a certo passo, o menu do banquete. O "catering" era local, recomendado pela casa real. Optou-se por um menu clássico, europeu. Para projetar a diferença portuguesa nessa refeição, restavam, assim, os vinhos e as sobremesas.

Nos vinhos, não foi fácil o consenso. Mas conseguiu-se. Na discussão das sobremesas, o nosso chefe do protocolo foi arriscando algumas sugestões. Parte delas foram sendo, desde logo, afastadas liminarmente pelo nosso embaixador em Londres, que falava com a autoridade da sua lendária - e indiscutível - competência gastronómica. Outras iam sendo retidas, para posterior ponderação. Até que, a certo momento, o chefe do protocolo decidiu avançar a ideia de se servirem trouxas de ovos. 

A reação do embaixador foi tremenda e sonora: "Ó homem! Trouxas de ovos?! Então você não sabe que a rainha não come ovos?". 

O chefe do protocolo, que carregava já, nesses dias, um histórico pouco suave de troca de argumentos com o embaixador, espantou-se: "Ai é!? A rainha não come ovos!?". E olhou em volta, procurando solidariedade no seu desconhecimento dessa suposta pecularidade dietética da soberana britânica, que, pelo tom de esmagadora evidência que fora assumido pelo seu colega em posto, era, com toda a certeza, uma banalidade informativa a que, por alguma razão, ele não tivera antecipado acesso. 

Eu estava sentado em frente do chefe do protocolo. Mantive-me impávido, bamboleando discretamente "que não", com a cabeça: se um embaixador diz que uma rainha não come ovos, a rainha não come ovos! Ou, pelo menos, é essa a convicção que um leal colaborador é obrigado a espelhar. Não faltava mais nada que assim não fosse!

Porque não sou dado a guardar a menor "memorabilia" de qualquer evento a que tenha assistido na vida, não posso conferir qual o doce português que foi servido à soberana britânica. Trouxas de ovos não foi, com toda a certeza! Mas, até hoje, ainda me interrogo se Isabel II teria ou não gostado dessa deliciosa iguaria, até porque nunca soube se, de facto, a rainha come ovos ou não.   

domingo, abril 29, 2012

Nóbrega (1942-2012)

Acabo de ler, num jornal, que morreu o Nóbrega, com 70 anos. Na minha juventude vila-realense, o Nóbrega era um ídolo da cidade, em particular depois de ter saído do nosso Sport Clube, onde o vi jogar por várias vezes. Um dia, um qualquer "olheiro" assinalou-o ao FC do Porto, onde viria a ganhar o lugar de "ponta esquerda". Por lá ficou uma dúzia de anos, nas décadas de 60 e 70, seguindo depois a habitual peregrinação que o destino aponta aos ex-jogadores, como treinador de pequenos clubes de província.

O Nóbrega era um futebolista muito rápido, com um excelente pé esquerdo, na época em que os "pontas" ("esquerda" ou "direita") corriam colados à linha, avançando, tão longe quanto possível, para centrarem "adiantados", evitando os fora-de-jogo (habituei-me, com o meu pai, até hoje, a dizer "off-side"), com cruzamentos sobre a área, onde os "pontas de lança" aproveitavam as suas jogadas. Julgo que o Nóbrega ganhou as suas quatro internacionalizações, de que a cidade muito se orgulhava, tirando o lugar ao Fernando Peres ou ao Oliveira Baptista, já não sei bem. Sei apenas que ambos eram do meu Sporting...

Lembro-me muito bem do pai do Nóbrega, o sr. Nóbrega, homem grande e com forte vozeirão, morador na Fontinha (ruela em que eu seguia para a minha primária "escola do trem"), logo à saída do "cabo da bila" (é assim, com "b"), famoso columbófilo e com fama de homem de esquerda, que tinha como profissão o ser artesão de pintura (ainda me recordo de ver, lá por casa, um tabuleiro metálico, com as armas da cidade, pintado pelo sr. Nóbrega, objeto de beleza mais do que discutível).

Quando o Nóbrega, o jogador, ao tempo em que era vedeta, se passeava pela cidade, esta olhava-o com evidente admiração. (Vila Real nunca teve muitos futebolístas conhecidos: com algum destaque, apenas o meu amigo Amaral e o Fraguito, ambos idos do Sport Clube... para o Sporting*). Recordo-me muito bem de ver o Nóbrega, de visita à cidade, um pouco curvado para a frente (ou talvez seja sugestão minha, pela forma como me habituei a vê-lo jogar), caminhando pela rua Direita (a maioria dos leitores não conhecerá a rua Direita, mas basta que saibam que é o "eixo" essencial da cidade), com o fácies grave e fechado que muitos adultos de Vila Real sempre exibem, creio que como forma de serem levados a sério. Nesses regressos, o Nóbrega, acolitado por alguns orgulhosos amigos locais, saudava, generoso, os conhecidos com quem se cruzava, que logo ficavam reconhecidos pela confiança recebida de um personagem famoso.

Era assim a minha cidade, a cidade do Nóbrega.

*(E Simão Sabrosa, que desconheço se jogou no SCVR e que foi... para o Sporting. E Paulo Alves, que, esse sim!, jogou no SCVR e teve êxito... no Sporting. E, claro!, o Costa, que foi para o FC do Porto, onde jogou vários anos).

sábado, abril 28, 2012

Conquistas de abril


Éramos quatro, entrámos pé-ante-pé, pelas escadas, evitando o elevador. O prédio era "ao Califa", ali na estrada de Benfica. A informação era muito segura: o Cordeiro, um sinistro inspetor da PIDE, ter-se-ia safado do cerco da António Maria Cardoso e podia estar refugiado em casa ou prestes a aceder a ela. Se iria resistir ou não, isso era o que se ia ver, e não nos sossegava mesmo nada. 

No terceiro andar esquerdo, batemos à porta e preparámos as armas, mimando a coreografia que víamos nos filmes, com a “expertise” operacional de quem vinha da administração militar. De dentro, uma voz feminina perguntou quem era..

"Forças Armadas”, respondemos, num plural majestático que estava a ter momentos de glória ímpar nessas horas, logo após o 25 de abril. 

A porta abriu-se, lenta, com a cara fechada de uma mulher de meia-idade a aflorar. Logo atrás, face angustiada, via-se uma rapariga mais nova, na casa dos 20 anos. Entrámos e o ambiente foi de compreensível frieza, com respostas algo agrestes, de uma dignidade ferida, sem remissão. 

Eram a mulher e a filha do inspetor. Procurámos ser muito corretos, embora firmes e incisivos nas questões, até para dar ares de uma determinação que disfarçasse o nosso imenso nervosismo. Que não, que o inspetor não estava, o que uma busca à casa logo confirmou, e não sabiam onde poderia encontrar-se ou se viria até à noite. Mas, pela conversa e outros dados circunstanciais, ficámos com a suspeição de que o Cordeiro ainda poderia chegar. Como nos tinham dito. Dispusémo-nos a deixar cair a noite, esperando o fugitivo Cordeiro. 

Estudámos a situação e, em discreto conciliábulo, pensámos que seria melhor isolar as duas mulheres, afastando-as do telefone negro na mesa da sala, não fosse elas serem tentadas a dar alarme, caso o inspetor entretanto ligasse. Dividimo-las por dois quartos, ambas acompanhadas. Dois de nós montámos uma espera no corredor, aguardando o eventual abrir da fechadura. 

Passara já mais de uma hora, quando, no imenso silêncio que ali se vivia, se ouviram, de um dos quartos, uns ruídos estranhos, parecendo gemidos ou choro, de súbito calados. 

"Tu não queres ver que o Silvestre perdeu a pachorra e decidiu dar dois tabefes à filha do pide, para lhe sacar o paradeiro do pai?!", exclamou o Branco

Não acreditei. Esse não era o estilo do Silvestre, um miliciano de Económicas, muito educado, com pinta de galã. Atravessei o curto corredor, abri a porta do quarto: lá estavam eles, sentados na cama, ela a vestir-se, sorridente e algo encavacada, com o Silvestre, já a puxar por um cigarro. 

Era um belo início da aliança povo-MFA

sexta-feira, abril 27, 2012

Gérard Castello Lopes

Recordo-me de um antigo, e hoje politicamente incorreto, anúncio na televisão portuguesa em que, com uma voz fanhosa, o locutor dizia: "Palavras para quê?!" Ao olhar para esta fotografia (que não conhecia) de Gérard Castello Lopes surgiu-me a mesma questão, porque descobri nela um bom exemplo desta espécie de sociologia gráfica do Portugal dos anos 50/60 que é (também) a obra fotográfica de Gérard Castello Lopes. Trabalhos que quase não necessitam de ser legendados, tal é a expressividade daquilo que nos transmitem.

Há dias, no novo Centro Gulkenkian, em Paris, assisti à inauguração de uma exposição de Gérard Castello Lopes, uma magnífica mostra do trabalho fotográfico, executado entre 1956 e 2006, por um homem de muitos saberes, e de que por aqui se já falou, por mais de uma vez. A fotografia que ilustra este post não integra a exposição, a qual, na verdade, vai muito para além daquilo que já se conhecia de Gérard Castello Lopes, que pode ser considerado um digno émulo português de Cartier Bressson. Jorge Calado foi o criativo curador desta exposição, organizada e exposta com gosto e maestria.

Até 25 de agosto, quem puder ver estas "Apparitions", no nº 39 do boulevard de La Tour-Maubourg, deve fazê-lo. Esta foi uma bela maneira da Gulbenkian comemorar o 25 de abril, data em que a exposição abriu.

quinta-feira, abril 26, 2012

Feriado

Conversa ouvida, há uns anos, ao almoço, numa mesa ao lado, num restaurante lisboeta, num dia 24 de abril:

- Eu, cá por mim, detesto o 25 de abril! Só trouxe balbúrdia, arruinou a economia e foi uma deceção! Então, cravos vermelhos, nem vê-los!

-  E o que é que fazes amanhã?

- Vou para o monte, ali ao pé de Serpa, já pedi a tarde ao chefe. Tirando uns dias de férias, e ligando ao 1º de maio, faz-se uma "ponte" imensa. Dá um jeitaço!  

Pois dá!

quarta-feira, abril 25, 2012

Os partidos e o 25 de abril

Hoje, dia 25 de abril, convidei para um almoço na embaixada  dois representantes em França de cada um dos cinco partidos políticos que hoje têm representação na nossa Assembleia da República. Durante cerca de duas horas, revisitámos, celebrando-a, a data fundacional da democracia que nos rege, numa discussão serena, onde não deixaram de estar presentes as divergências de que se constitui a diversidade da nossa vida política. Mas onde também ficou evidente, acima dessas diferenças, o quanto Portugal deve a quem o libertou de uma ditadura que criou um triste interregno, de cerca de meio século, numa vida democrática que havia sido iniciada em 1820.

A política é uma atividade nobre que, em grande parte, se objetiva através da ação dos partidos políticos, entidades congregadoras de vontades e portadoras de projetos de sociedade, por natureza contraditórios entre si. Nos últimos tempos, em Portugal, mas não só, a atividade partidária tem vindo a ser denegrida, nos simplismo de um discurso de matriz populista, identificada como um mero exercício de lóbi, como espaço para o carreirismo pessoal, para a concretização de algumas negociatas e para agendas que, muitas vezes, estão longe da prossecução do interesse público que deveria ser o centro da sua atividade. É muito provável que, numa certa medida, essa acusação possa ter alguma sustentação na realidade, justificando assim todos os esforços que possam ser feitos para uma regeneração do nosso sistema partidário. Mas que fique claro: sem os partidos políticos, estes ou outros, não há democracia.

O meu convite de hoje destinou-se, assim, a homenagear os partidos políticos portugueses, com uma saudação particular para aqueles que, nomeadamente em França, já existiam antes do 25 de abril e através de cuja ação militante, muitas vezes em condições bem difíceis, também foi possível ajudar a concretizá-lo.

Miguel Portas (1958-2012)

Acho que Miguel Portas, se tivesse podido determinar a data da sua saída deste mundo, gostaria que ela tivesse coincidido com um 25 de abril. Por algumas horas, isso não foi possível. Mas os cravos de hoje são para ele.

Conheci pessoalmente o Miguel há cerca de dez anos. Eu estava colocado em Viena, tínhamos amigos comuns e, um dia, recebi dele um e-mail, manifestando o desejo de trocarmos impressões sobre as questões europeias, numa ocasião em que eu passasse por Lisboa. Era um assunto em que eu trabalhara alguns anos e pelo qual me continuava a interessar, embora dele desligado profissionalmente. 

Convidou-me para almoçar, sugerindo, cuidadoso com os riscos para o meu "estatuto", aquilo que considerava um sítio "discreto": um pequeno restaurante na praça da Armada (ao lado das "espanholas"), que costumava frequentar (e que eu, por "milagre", não conhecia). Ri-me, intimamente, divertido com o que sabia ir ser o grau de "discrição" do lugar: minutos depois da nossa chegada, as escassas mesas foram invadidas por funcionários do ministério dos Negócios estrangeiros, os quais, nessa tarde de fins de 2002, devem ter espalhado, por uns claustros das Necessidades à época um tanto assombrados, terem sido testemunhas de uma conversa sigilosa entre um embaixador algo conhecido e um deputado do Bloco de esquerda. Recordo-me bem de preocupação do Miguel quando, bem disposto, lhe revelei as presumíveis consequências, em matéria de inevitável "gossip", desse nosso encontro. E sosseguei-o quanto à importância que eu próprio (não) dava ao facto.

O Miguel Portas que então conheci - e com quem, em anos futuros, apenas troquei bastantes e-mails, dada a nossa vida geograficamente distante - era um homem sereno, com um sorriso acolhedor, extremamente delicado, que transpirava honestidade e sentido de dedicação à coisa pública. Tinha seguido, desde bastante novo, um percurso político de grande dignidade, retratado de forma curiosa num pouco conhecido livro inglês, de 1975, que um dia descobri num "sebo" (alfarrabista) brasileiro. O Brasil, aliás, interessava-o bastante, como sempre sublinhava um amigo comum, que muito me falava dele - Tarso Genro, ministro da Justiça e agora governador do Rio Grande do Sul.

À época desse nosso encontro, o Miguel estava muito preocupado com o sentido que as coisas tomavam na Europa. Mas, contrariamente a mim,  angustiava-o menos a nova arquitetura institucional que se desenhava, e, muito mais, o sentido, que lia como quase totalitário, da deriva neoliberal que atravessava as políticas que iam fazendo o seu caminho em Bruxelas. Mal nós imaginávamos o que estava por aí para vir...

Recordo-me de, na conversa, o ter interrogado sobre a génese do Bloco de Esquerda, tentando perceber como era possível a convivência, no seu seio, de tradições trotskistas e maoístas, dimensões que eu julgava mais incompatíveis do que a água com o azeite. Contou-me o papel que as pessoas como ele, originárias do PCP e chegadas ao Bloco através da "Política XXI", representavam nesse (então) curioso projeto político. E recordo-me bem de uma frase que me disse: "No fundo, eu sou hoje considerado como situado na ala direita do Bloco".

Miguel Portas fez um trabalho notável no Parlamento Europeu, sem concessões, com imensa coragem, correndo mesmo o risco de afrontar as iras corporativas, de que é bem demonstrativa uma notável e quase histórica intervenção, que pode ser vista aqui. Ainda na passada semana, em Bruxelas, dele falei com amigos, que me avisaram do agravamento da sua doença.

É quase um lugar comum dizer que homens como Miguel Portas fazem muita falta à política portuguesa. Mas fazem-no muito mais à sua família - muito em especial à sua mãe, Helena Sacadura Cabral, estimada comentadora deste blogue, bem como ao seu irmão, Paulo, meu ministro - a quem deixo a expressão amiga e muito sincera do meu grande pesar por esta perda.

Este 25 de abril é muito mais triste sem Miguel Portas.

terça-feira, abril 24, 2012

Com cravos, sempre!

Correndo o risco de parecer pretensioso, mas atenta a discussão em torno das comemorações do 25 de abril, apetece-me respigar o que aqui publiquei, em 25 de abril de 2010:

"Em Portugal, o 25 de abril é oficialmente celebrado com uma sessão de discursos políticos e partidários na Assembleia da República. Todos os anos, para além da aturada observação jornalística de quem leva ou não um cravo ao peito, a atenção pública volta-se para o tom e exegese dessas intervenções, que invariavelmente utilizam a comemoração abrilista para tratar a realidade da conjuntura política do presente. Assim, aquilo que poderia ser um espaço de proclamação de elegias à liberdade conquistada nessa data acaba por se transformar numa arena de severo combate político, com as diversas leituras de "abril" a servirem de arma de arremesso, mais ou menos subliminares. Julgo que ninguém, com sinceridade, acreditará que essa maratona declaratória contribui, minimamente, para louvar as virtualidades da Revolução e para cativar novas gerações para o culto desse momento fundacional da nossa democracia.

Noutro registo, menos plural e um pouco mais "biaisé", um grupo de muito respeitáveis militares que fizeram a Revolução de abril, acompanhados por figuras da nossa história política (quase sempre já) passada, acolitados por incontornáveis representantes de forças políticas e sindicais de lateralização óbvia, desce a avenida da Liberdade, aí já com total abundância de cravos e com a exibição de slogans que fazem parte do património típico da memória revolucionária. Ninguém negará, contudo, que o tom peculiar dessa manifestação acaba por excluir muitos outros, para quem a memória da Revolução se exprime em moldes mais serenos e menos polítizados. 

Na simples mas inalienável qualidade de cidadão, quero deixar aqui expresso, com a total consciência do peso do que escrevo, que considero que ambos os eventos acabam por funcionar, objetivamente, contra o 25 de Abril. 

Comemorar o 25 de Abril, celebrar essa magnífica Revolução que, por uma vez, quase que fez o milagre impossível de unir o país, deveria consubstanciar-se apenas na organização de festas populares por todo o país, com música, com bailes, com juventude, com alegria e, sempre, sem discursos e sem slogans. Como, aqui em França se faz com o "14 juillet". Ah! e com muitos cravos, para quem os quisesse e os apreciasse. A liberdade também se faz da possibilidade dessa opção. 

Mas que não reste a menor dúvida: nesta data, estive, estou e sempre estarei de cravo vermelho ao peito.".

Amanhã, na Embaixada de Portugal em Paris, reunirei, num almoço, representantes de todas as forças políticas com expressão na Assembleia da nossa República. Os partidos não esgotam a democracia, mas, sem eles, ela não existiria.

segunda-feira, abril 23, 2012

INSEAD

Na passada semana, convidei, para um jantar, doze jovens portugueses que estão a frequentar o INSEAD, a prestigiada "bussiness school" internacional existente em Fontainebleau, que já foi dirigida pelo professor António Borges.

Para quem, como eu, vive há mais de uma década fora do país, foi interessante poder trocar impressões com representantes de uma nova geração saída de universidades portuguesas, colhendo a sua perspetiva sobre o modo como leem a situação que Portugal atravessa.

Curioso, mas um pouco menos agradável, foi constatar que, na sua esmagadora maioria, esses futuros profissionais têm, como objetivo imediato, vir a exercer a sua atividade no estrangeiro. 

domingo, abril 22, 2012

Eleições

Há um antigo preceito segundo o qual o sistema constitucional francês faz com que, na primeira volta das eleições presidenciais, os cidadãos escolham o candidato que mais lhes agrada, e, na segunda volta, rejeitem o candidato de que menos gostem.

Hoje é dia da primeira volta das eleições presidenciais em França. Porque, ao contrário do que por vezes acontece em Portugal, nenhum candidato, na história da V República, alguma vez obteve, nessa mesma primeira volta, mais de 50% dos sufrágios, por forma a ser, desde logo, eleito, terá lugar um segundo escrutínio, em 6 de maio. Só nesse dia se conhecerá o nome do presidente da República, para os próximos cinco anos.

O facto de, segundo as sondagens, quase um em cada dois franceses anunciar que tenciona ir votar, na primeira volta, num candidato diferente dos dois que, com grande probabilidade, passarão à segunda volta, dá que pensar que a frase com que abri este post pode ter alguma coisa de verdade. 

sábado, abril 21, 2012

Corporações

São evidentes - e, para muitos, chocantes - os esforços de várias corporações para tentarem limitar o acesso às suas profissões. Há uns tempos, esses ventos sopraram do lado dos advogados. Mais recentemente, voltou a ouvir-se o apelo, embrulhado, como sempre, em argumentos de "qualidade", agora do lado dos médicos.

Há médicos a mais? Se assim for o caso, então talvez seja de introduzir mecanismos imperativos para forçar a ida para a província profunda da única profissão que tem um emprego garantido pelo Estado, logo no termo do curso. Auscultem-se as populações...

quinta-feira, abril 19, 2012

Vila Real


Benjamin Marques (1938-2012)

Faleceu, em Paris, o pintor português Benjamin Marques.

Há muitos anos residente em França, onde seguiu por vários percursos de vida, Benjamin Marques era uma figura muito respeitada e estimada no seio da comunidade cultural portuguesa. Reivindicando-se de uma herança surrealista, fruto de contactos na sua juventude lisboeta, a sua pintura mais recente seguia já abertamente por outros caminhos, como tive o ensejo de observar em exposições onde exibiu os seus trabalhos. Um dos seus hóbis de eleição era a história de arte, tendo proferido diversas conferências sobre o tema.

Benjamin Marques era um homem de alma grande, caloroso, de emoção fácil e verbo cuidado. Devo-lhe gestos de grande simpatia e vou sentir falta dos abraços com que sempre me acolhia. O coração traiu-o, na manhã de hoje. À sua família, bem como à sua grande amiga e colega artística Isabel Meirelles, deixo o testemunho do meu respeito pela sua memória.

Os jardins da Europa

No domingo passado, ao passar na "bruxelense" rue de la Loi, recheada de endereços que albergam outras tantas estruturas da União Europeia, alguém me perguntava se não estaríamos perante uma "mastodôntica" instituição, gastadora de recursos.

(A obcecação pelo "downsizing" dos serviços públicos é hoje um virus subliminar a que poucos escapam).

Ontem, num almoço, aqui em Paris, alguém lembrava que a União Europeia, no seu conjunto, tem menos funcionários do que a "Mairie" (Câmara municipal) de Paris. Ao que alguém comentou, numa nota primaveril: "mas tem muito menos jardineiros..." 

Sudão

Leio há pouco num jornal: "Omar Bachir, o presidente do Sudão, anunciou hoje querer libertar o Sudão do Sul dos seus líderes, afirmação que indicia a proximidade da guerra entre os dois países".

Sei que é uma aposta fácil ser pessimista em África, mas não resisto a lembrar o que aqui escrevi, há alguns meses, sobre o assunto.

quarta-feira, abril 18, 2012

Ardiles e Messi

Em Londres, em 1982, durante a guerra entre o Reino Unido e a Argentina, a propósito do arquipélago das Falkland/Malvinas, testemunhei o facto do fantástico jogador argentino Oswaldo Ardiles ter de ser cedido temporariamente pelo Tottenham, em face do ambiente hostil que se criou à sua volta.

A crise política que agora se instalou entre Madrid e Buenos Aires, por virtude da nacionalização conflitual de uma empresa petrolífera com capitais espanhóis, está, felizmente, muito longe de ter a dimensão do conflito desse mês de abril, há precisamente 30 anos. Por isso, tenho esperança em que um outro génio argentino do futebol, como Lionel Messi, não veja a sua brilhante carreira afetada por esta nova tensão. 

Será que o futebol pode escapar, por completo, à política?

terça-feira, abril 17, 2012

O tempo dos outros

O título deste post é o de um livro de Adriano Moreira, publicado nos anos 60 do século passado.

(Recordo-me de o ter utilizado como epígrafe equívoca de um artigo em "A Voz de Trás-os-Montes", em outubro de 1969, quando a Oposição democrática, que se opunha ao já então decadente marcelismo, aproveitava, com ansiedade, o estreito espaço de manobra pública que a censura da época lhe dava. Como um dos efémeros "porta-vozes" dessa mesma Oposição, em Vila Real, inundei o jornal de vários textos, até que a paciência do censor local, o capitão Medeiros, se esgotou e fui finalmente privado dessa tribuna, para aberto desagrado do diretor do jornal, (o então padre) Henrique Maria dos Santos*).

Lembrei-me deste título hoje, a propósito da imensa curiosidade com que o corpo diplomático acreditado em Paris acompanha as declarações dos responsáveis que a candidatura de François Hollande, o principal "challenger" do atual presidente, mantém para os vários setores governativos, em caso de vitória. Neste tempo que, segundo muitas sondagens, poderá vir a ser por aqui "o tempo dos outros", é importante podermos garantir às nossas autoridades uma previsão daquilo que uma possível nova administração pode vir a fazer, se acaso o resultado das urnas lhe vier a ser favorável. O respeito que é devido aos poderes instituídos, bem como à possibilidade de serem reconduzidos, pela livre expressão da vontade dos franceses, não deve nem pode limitar o nosso interesse e legitimidade em estarmos preparados para todas as eventuais alternativas. 

Com alguma ironia - sem a qual de há muito não sei viver -, costumo dizer que, basicamente, só há três circunstâncias em que os embaixadores têm por certo que as suas comunicações são lidas, com algum interesse, nas respetivas capitais: quando há crises nas relações bilaterais, quando há golpes de Estado nos países onde estão acreditados ou quando há localmente eleições marcadas por algum grau de indecisão quanto aos resultados. No dia de hoje, não sendo embaixador espanhol em Buenos Aires, nem estando na ingrata posição do meu colega em posto em Bissau, resta-me assumir o popular risco de opinar sobre a campanha presidencial francesa - na esperança, quiçá vã, de alguns dentre quantos me leem em Lisboa não tendam a dar mais crédito ao que, sobre o tema, vão escrevendo o "Financial Times", o "International Herald Tribune" ou mesmo o "Le Monde".

Em tempo: um comentador informou que Henrique Maria dos Santos faleceu em 13 de abril, quatro dias antes deste post em que eu falava da sua louvável abertura de espírito, nesses tempos complexos.

O outro lado do vento

Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe.  Agora que já saiu um novo núme...