sábado, outubro 01, 2011

Rosário

Estou certo que a Rosário teria gostado do momento que os seus familiares e amigos criaram na quinta-feira, no Père Lachaise, na muito triste e emocionada despedida que muitos lhe fomos prestar.

Com o Álvaro Vasconcelos, seu marido, a Rosário de Moraes Vaz foi a espinha dorsal dessa grande aventura de modernidade no pensamento geopolítico português que constituiu o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, cuja revista "Estratégia" ela propria dirigiu.

Lembro-me bem dos debates que tivemos no âmbito do EuroMesco, essa rede a que ela tanto se dedicou, na busca de soluções para o espaço do Mediterrâneo, o tema que sempre a fascinou. E as discussões sobre a Europa, onde estivemos bastante distantes para, mais tarde, coincidirmos muito nas nossas perspetivas.

A Rosário era uma personalidade forte, frontal, com muitas ideias e com vastas razões para as afirmar. Muito culta, atenta às questões do mundo, iluminava as discussões e revelava a sua inteligência brilhante, num "tandem" sempre criativo com a serenidade profunda do Álvaro. 

Recordo, agora com saudade, a nossa última conversa, na sua casa, aqui em Paris, ela com o seu inseparável cigarro e o seu entusiasmo transbordante. E, depois, o último dia em que brevemente falámos, no ano passado: ambos de muletas, fruto de acidentes, saídos de uma conferência sobre a Europa, na Gulbenkian de Paris. Ironizámos que estávamos ambos como o próprio projeto europeu...

sexta-feira, setembro 30, 2011

FT

Já por aqui confessei, por mais de uma ocasião, que aprecio bastante o "Financial Times", o diário financeiro britânico, um dos jornais mais bem escritos e construídos do mundo.

Um tarde de sábado, nos anos 90, em Londres, fui ao mítico e já desaparecido estádio de Wembley ver um jogo de futebol. De jeans e camisola, apanhei o metro, metido na fauna dos apoiantes das duas equipas, que, por essa hora, ainda viviam o tempo de relativo sossego que antecede as partidas. O ambiente era galhofeiro, sem agressividade, embora com muitas "bocas", a maioria num intraduzível "cockney". 

Alguns escassos viajantes liam tablóides, tipo "The Sun", "Today" ou "Daily Mail". Eu, distraído, recostei-me num banco e deliciava-me com o FT do dia. Não me tinha dado conta que, naquele ambiente, ler aquele imenso jornal cor-de-rosa era quase tão natural como ler "O Diabo" num "centro de trabalho" do PCP.

A certo ponto da viagem, dou-me conta que muitos olhares convergiam sobre mim. E algumas "bocas" também. Até que um grandalhão, vestido a rigor de apoiante de clube, me espetou o dedo no jornal e inquiriu: "Hey, pal! What the hell are those pink sheets you're reading?" A situação não era fácil. Dar explicações era descabido, recolher o jornal seria cobardia. Já havia um público para a cena. Com um sorriso amarelo, saiu-me: "Wanna see the weather forecast?". Não estava seguro de ter sido a melhor deixa, mas foi o melhor que me surgiu. Para meu imenso alívio, o grandalhão sorriu. E lá seguimos para mais uma "Cup Final". No regresso do jogo, com metade do metro zangado com o mundo, viajei prudentemente com o FT debaixo do braço.

Os sábados do FT trazem, nos dias de hoje, um imenso suplemento, para cujo título alguém, há dias, chamou a minha atenção: "How to spend it". Para sintetizar: trata-se de uma revista para quem tem dinheiro e gosto. Esse amigo dizia-me: "Não achas obsceno e provocatório um título como este, num tempo como o que atravessamos?". Tive de concordar. Mas se esse amigo lesse alguns textos do "The Spectator", como se sentiria?  

Economia e imagem

A convite dos organizadores do colóquio "Economia portuguesa: uma economia com futuro", apresentei hoje na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, uma comunicação sobre "Portugal: a sua economia e a sua imagem".

O tema foi por mim escolhido pelo facto de considerar necessário que se encare, de frente, o modo como Portugal é hoje visto no exterior, em especial tendo em atenção a fragilidade, recentemente mais evidenciada, da sua situação económico-financeira. E sobre o modo de intervir nesse contexto.

Ao longo do dia, o colóquio deu origem a debates muito interessantes e animados sobre o estado de Portugal neste tempo de crise, mas também sobre o euro e a sobre as políticas da Europa. No painel em que intervim, dedicado a "Portugal no mundo", e como bem notou a moderadora Diana Andringa, o auditório foi mais crítico e pessimista que os membros do painel, cujas opiniões foram saudavelmente contraditadas. 

A minha intervenção, para quem possa estar interessado, pode ser lida aqui.  

quinta-feira, setembro 29, 2011

Grafitti

Está no "l'air du temps" de certa intelectualidade modernaça aceitar a livre prática do "grafitti", dando-lhe dignidade de expressão artística e afirmando o dever de tolerância perante esses selváticos atentados de poluição visual. Como absolvição de todos esses atos, mostram-se escassos exemplos em que esse tipo de pintura anima, por uns meses, a fachada de alguns prédios abandonados.

O presidente da Câmara do Porto, num ato de meridiano bom senso, decidiu dar ordens à polícia municipal para tentar punir os responsáveis por estes atos. Como não podia deixar de ser, logo surgiram vozes libertárias a reclamar o direito dessa gandulagem à livre "expressão" nas paredes dos outros. Será que esses paladinos da liberdade seriam tão afirmativos se as portas das suas casas tivessem o mesmo destino das que a fotografia mostra?

quarta-feira, setembro 28, 2011

Conversa de jantar

O embaixador havia distribuído os convidados por cinco mesas. Havia de tudo: diplomatas, políticos, funcionários superiores franceses e gente do chamado "social set".

O jantar fora divertido, com conversa solta. No final, o anfitrião pediu que cada mesa indicasse, aproximadamente, em que minuto da refeição a conversa derivara para o tema Dominique Strauss-Khan. Na minha mesa, perdemos: só havíamos falado no assunto aí à chegada do primeiro quarto de hora. Outros tinham abordado o assunto cinco minutos depois de se sentarem.

O caso DSK, desde há meses, é um "prato" incontornável de qualquer jantar parisiense. 

Uma dúvida sempre se me coloca: como serão as coisas nos jantares em Roma?

BB e David

O franceses habituaram-se a interpretar BB como as iniciais de Brigitte Bardot*. Bertolt Brecht, o genial escritor e teatrólogo alemão, usou as mesmas iniciais no seu magnífico poema "Do pobre BB", que Jorge Palma cantou num álbum de 2005. E, no mesmo registo, há que lembrar BB King, esse génio do jazz que tive o privilégio de ouvir ao vivo, por mais de uma vez.

Portugal tem também o seu BB - as iniciais pelas quais fica identificado Baptista Bastos. Conheci-o pessoalmente há quase 40 anos, quando, pelas tardes, nos encontrávamos num café e bar no topo da então livraria Opinião, na rua da Trindade - eu saído do meu emprego na Caixa, ao Calhariz, ele acabado o seu trabalho no "Diário Popular", também por ali perto. Esse era então um espaço aberto de conversa onde eu me imiscuíra, por via de amigos comuns. Por lá paravam jornalistas, escritores e outros que, como eu, eram meros espetadores atentos da vida intelectual de Lisboa. Com a sua voz bem caraterística, não abandonando a marca pessoal que é o seu laço, Baptista Bastos confirmava, em pessoa, a frontalidade opinativa a que sempre nos viria a habituar no futuro. Passei a lê-lo com regularidade e, depois sempre à distância, a apreciar o seu sentido crítico e a sua postura ética, muito em especial a independência com que sempre preserva a amizade por cima das ideologias. E, também, a sua rara maestria no domínio do português, uma "arma" que utiliza como poucos poucos e cuja "bala" mordaz tem criado engulhos em muitos.

A que propósito lembro BB agora? Porque acabo de ler a magnífica crónica que ele hoje publica no "Diário de Notícias", sobre esse outro grande senhor da literatura portuguesa, que se chamou David Mourão-Ferreira.

Nestes dias de uma "Lisboa contada pelos dedos", em que há cada vez mais "Gaivotas em terra", haveria grande proveito em que se lesse e relesse esses dois grandes escritores.

* que hoje faz 77 anos

terça-feira, setembro 27, 2011

Lula

A (minha má) foto é de Luíz Inácio Lula da Silva, doutor "honoris causa" pelo Institut d'Études Politiques - SciencesPo, em Paris, ontem, ao final da tarde.

Posso estar enganado, mas creio que na história de SciencesPo nunca terá havido um doutoramento mais animado, com um público jovem tão entusiasta, a assistir a uma "lição" tão extraordinária como a que foi dada pelo antigo presidente brasileiro.

Lula foi igual a si próprio. Leu um discurso mas, além disso, fez um brilhante improviso. Já ouvi muitas vezes Lula falar em público. Nunca encontrei um líder político que, com tanta genuinidade e inteligência, soubesse adaptar tão bem as suas palavras aos diferentes auditórios, sempre com sucesso.

A certo passo, Lula falou do tempo em que os economistas do "Norte" davam conselhos "paternais" ao Brasil e a outros países do "Sul", sobre a melhor forma de conduzirem as suas economias. E Lula perguntou: que diabo aconteceu a esses "sábios"? Onde é que eles se esconderam, agora que o "Norte" tanto precisaria das suas soluções?

Lula da Silva, no termo da sua intervenção, fez um forte elogio da política. Chamou a juventude a interessar-se pela vida cívica, a não desistir, a superar os maus momentos e as derrotas: "Quando aqui, em SciencesPo, necessitarem de alguém para dar uma aula sobre derrotas políticas, chamem-me! Andei 20 anos a perder eleições. Em política, aprende-se muito com as derrotas, podem crer."

Lisbonne

Edith Bricogne é a autora das fotografias e Fernando Pessoa escreveu dois belos textos que as Editions Chandeigne acabam de editar, num belíssimo livro - um presente que todos poderemos dar aos nossos amigos franceses, criando uma garantida angústia àqueles que eventualmente ainda não conheçam Lisboa.

segunda-feira, setembro 26, 2011

Incertezas

A conversa, à minha frente, entre dois amigos, ia animada, numa esplanada parisiense. Nesse final de tarde do passado sábado, tinha-lhes dado para a política.

Eu estava a ser um espetador algo distante do diálogo. Para imenso espanto deles (e, vá lá!, até de mim próprio), havia decidido não me imiscuir na conversa, enquanto falassem desses temas. Expliquei, simplesmente, que, como era fim de semana, tentava não me incomodar. 

Sem sucesso, tinha puxado a conversa para o magnífico resultado, na véspera, do Porto-Benfica, para a subida do PSG no campeonato francês e para o "hat-trick" do Ronaldo, acabado de ocorrer. Mas ninguém ia em futebóis. Procurei suscitar a questão da Cesária Évora, do novo CD de Sérgio Godinho e chamei a atenção para que, se não se apressassem, já não haveria bilhetes para verem o Aznavour, no "Olympia". Também não consegui dar música à conversa. Em desespero, apelando já a sentimentos de outra natureza, puxei, pela enésima vez, o tema Strauss-Kahn. E, no mesmo registo, até cheguei a atirar para a mesa conversas privadas transalpinas. Nada, não descolavam do tema.

Um dos amigos, que anda mais cético, dizia já não acreditar em nada. O outro, afirmativo, tinha certas coisas por adquiridas, de "fonte limpa". A certo passo, já nem sei bem a propósito de quê, disse:

- Tenho a certeza absoluta!

Resposta pronta do outro:

- Certezas absolutas?! Tu estás é doido! Hoje só há incertezas absolutas!

De facto.

Fausto

Mais uma boa notícia para a música portuguesa: Fausto concluiu a gravação do duplo álbum que completará a trilogia que inclui "Por este rio acima" e "Crónicas da terra ardente", o qual acompanha as viagens terrestres dos portugueses por África.

Como é que soube, quando esta notícia não foi ainda publicada? Disse-me ontem um velho amigo chamado Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias ou, simplesmente, Fausto.

domingo, setembro 25, 2011

Ouf!

Já por aqui confessei, mais de uma vez, que, embora use computadores desde há quase um quarto de século, continuo a ser um completo "nabo" em informática. E, mais do que isso, não tenho a menor intenção de aprofundar os meus conhecimentos neste domínio. Tenho muito mais que fazer, acreditem!

Por essa razão, fico completamente sem soluções em face de incidentes como os que aconteceram nas últimas 24 horas, quando um inesperado "hóspede" criou alertas negativos sobre este blogue na comunidade informática. Lá me esforcei por deitar ao "lixo" tudo quanto me passou pela cabeça que pudesse estar a causar o problema, quando, na realidade, um pouco mais de atenção poderia ter-me conduzido, com grande facilidade, para a origem da questão.

Com tudo resolvido em algumas (longas) horas, com a "Google" a portar-se bem (terá sido porque aqui a elogiei, há dias?), devo dizer que esta experiência me fez refletir um pouco sobre o mundo informático, sobre os nossos interlocutores apenas virtuais nesse mundo e, em especial, sobre a nossa dependência dessa "nuvem" que sobre nós paira e à qual entregamos os nossos arquivos, as nossas relações, as nossas fotografias e os nossos textos. 

Confesso que, nas últimas 24 horas, aprendi uma lição: converti-me às vantagens do "back-up".

Uma nota final para voltar a agradecer a ajuda de quantos - e foram muitos! - se interessaram pelo problema que afetou o blogue. Confirmaram que pode haver uma rede de solidariedade entre quem se conhece menos bem mas é "consócio" nessa tal "nuvem". Bem hajam!

Bancas

Leio no "Público" este título alarmante: "Banca nacional já perdeu 46% do seu valor em bolsa este ano".

Leio no "Journal de Dimanche": "La dégringolade des trois principaux établissements français" - desde 1 de julho, BNP Parisbas perdeu 53% do seu valor em bolsa, Société Générale 61% e Crédit Agricole 58%.

Os amigos e as ocasiões

Há duas atitudes comuns, entre outras possíveis, quando dois amigos nossos se incompatibilizam.

Uma delas é optar abertamente pelas razões de um deles, fazendo-as totalmente nossas e daí retirando as necessárias e radicais consequências no tocante à relação com o outro. Quase sempre, é isso que cada um, expressa ou implicitamente, nos pede.

Outra é procurar preservar ambos os vínculos de amizade, não obstante se poder reconhecer que um desses amigos até pode ter mais razão do que o outro. Nesse caso, emerge o risco simétrico desse amigo, o tal que tem mais razão, poder não entender que continuemos a nossa relação com quem a tem menos. 

Alguns acharão que esta segunda atitude é uma contemporização frágil, quiçá reveladora de pusilanimidade. Não vejo as coisas assim. As amizades criadas na vida são valores "bilaterais" (para usar um termo diplomático), que devem situar-se, tanto quanto possível, acima dos circunstancialismos exteriores. Bem basta aturarmos as razões da nossa consciência, quanto mais "importarmos" as razões dos outros. A menos que estejamos perante a ultrapassagem de fronteiras éticas - onde a nossa própria consideração pessoal por um dos amigos poderia ter tendência a esbater-se.

Mas a que proposito vem isto? De nada, deve ser do belo sol deste domingo de outono em Paris.

Explicação

Alguns leitores estranharão o facto de terem desaparecido, de alguns posts recentes, links que lá existiam, dando acesso a temas musicais. A verdade é que algum desses links comportaria um "conteúdo malicioso", o que fez com que este blogue tivesse estado sob "suspeita" informática durante algumas horas.

Para matar o mal pela raíz, eliminei todos esses links e o blogue parece, para alguns leitores, ter voltado à sua normalidade. Do mesmo modo, eliminei vários "contadores", o mecanismo que nota os blogues que citam o "Duas ou três coisas" e mais algumas coisas mais. Já reportei o assunto à gestão dos blogues e espero que, dentro de algum tempo, tudo fique clarificado.

O meu obrigado a todos os amigos que se têm preocupado com esta situação. 

sábado, setembro 24, 2011

Filipe Pinto-Ribeiro

Para encerrar da melhor forma a onda musical, bem diversificada, que "se abateu" sobre este blogue nos últimos dias, regista-se agora o magnífico espetáculo que ontem teve lugar na Embaixada de Portugal em Paris. 

Filipe Pinto-Ribeiro, um dos grandes pianistas portugueses contemporâneos, apresentou, a uma sala a abarrotar, um conjunto de peças de música europeia, naquela que representou a nossa contribuição para o ciclo anual de eventos organizados pelos centros culturais europeus em Paris.

Foi uma das mais belas jornadas da série de espetáculos musicais "Entre pautas/entre partitions" que, sob a égide do Instituto Camões, temos vindo a organizar na residência portuguesa em Paris. Para quem queira a eles assistir no futuro, sugiro que esteja atento ao que se publica aqui. Uma quota de convites estará disponível para quem se increva pela internet.

E, quem cá não esteve ontem, pode saber algo mais sobre Filipe Pinto-Ribeiro aqui.

Sodade

Cesária Évora sofreu um AVC e está internada aqui em Paris. O "Le Monde" dedica-lhe, na sua edição de hoje, uma merecida página.

A certo ponto do texto, a jornalista autora do texto destaca o papel de José da Silva, o empresário da cantora, que, pela primeira vez, "no final dos anos 80, em viagem a Lisboa, encontrou Cesária num bar", lançando a partir daí a sua carreira internacional. Mas a jornalista não se fica por aqui: ao notar o modo chocado como José da Silva se viu agora obrigado a relatar à imprensa que as condições de saúde de Cesária lhe não permitem continuar a cantar em público, assinala que foi este empresário "quem a fez sair fora das suas fronteiras lusitanas e colonialistas". 

Caramba! "Colonialistas"? No final dos anos 80, quando Cabo Verde é independente desde 1975? Para além da iliteracia político-cultural - outros diriam, simplesmente, estupidez - que esta referência traduz, o lapso é bem revelador da persistência, num certo imaginário cultural europeu, de restos de uma lusofobia que a duração temporal do nosso colonialismo, para além da de outros congéneres europeus, acabou por enraizar. Há um preço que, acreditem!, continuamos ainda a pagar por isso, no "retrato" externo do nosso país. Para a semana, vou também referir esse facto, num seminário em Lisboa onde abordarei o tema bem atual da imagem de Portugal e da sua economia.

Cesária Évora, na sua genialidade, abordou em canção a questão dos caboverdeanos que foram trabalhar para S. Tomé e Príncipe e que por lá ficaram. Esta era uma realidade até então muito pouco conhecida em Portugal.

Eu havia-me defrontado com ela em inícios de 1976. Estava de visita a S. Tomé, enviado por Lisboa, para tentar resolver uma greve dos professores cooperantes que Portugal para aí tinha destacado. Um dia, em conversa com uma empregada da residência do nosso embaixador, a senhora revelou-me que era caboverdeana e que estava há muito tempo em S. Tomé, para onde o marido, já falecido, tinha vindo trabalhar nas roças do cacau. Perguntei-lhe se, entretanto, já tinha voltado à sua terra ou se tinha intenção de fazê-lo definitivamente, agora que o seu país era independente. Nunca esqueci o olhar intensamente triste com que me disse: "Ó doutor? Como? Nunca tive dinheiro nem nunca vou ter para voltar a ver Cabo Verde!". Foi nesse instante que acordei para o drama imenso dessa gente, expatriada dentro do Portugal da ditadura, para quem - para essas pessoas, sim! - o sistema colonial não morreu com o 25 de abril.

Cesária Évora cantou, para sempre, como ninguém, em morna num melódico crioulo, a tragédia dessa sua gente que foi para S. Tomé, no inesquecível "Sodade". 

José Niza (1938-2011)

Que venha o sol o vinho e as flores
Marés, canções de todas as cores
Guerras esquecidas por amores;

Que venham já trazendo abraços

Vistam sorrisos de palhaços
Esqueçam tristezas e cansaços;

Que tragam todos os festejos

E ninguém se esqueça de beijos
Que tragam pendas de alegria
E a festa dure até ser dia;

Que não se privem nas despesas

Afastem todas as tristezas
Pão vinho e rosas sobre as mesas;
Que tragam cobertores ou mantas
E o vinho escorra p'las gargantas
E a festa dure até às tantas;

Que venham todos de vontade

Sem se lembrarem de saudade
Venham os novos e os velhos
Mas que nenhum me dê conselhos!

Que venham todos de vontade

Sem se lembrarem de saudade
Venham os novos e os velhos
Mas que nenhum me dê conselhos! 

Na morte de José Niza, um homem solidário e sonhador, aqui fica, em homenagem, a sua "Festa da vida", a letra que construiu para a canção, com música de José Calvário, com que Carlos Mendes ganhou o Festival RTP da Canção, em 1972.

sexta-feira, setembro 23, 2011

Madeira

Não deve haver português com internet que, nestes últimos dias, não tenha recebido uma anedota, um poster ou outra graça alusiva à Madeira e à respetiva gestão financeira.

Às vezes pergunto-me como é que os estrangeiros olham para esta nossa propensão para aliviar as dores pelo humor. Uma coisa me parece bem clara: não convirá que a "troika" se convença de que, lá porque afivelamos um sorriso amarelo, andamos felizes...

Protocolo

Estive ontem numa palestra proferida pelo antigo chefe do governo espanhol, José Maria Aznar. 

O "presidente del Gobierno" foi uma figura marcante da vida política espanhola, titulando oito anos consecutivos de liderança. A Espanha vivia então os tempos de uma economia de sucesso, com uma forte influência na vida europeia. A isso correspondeu um momento de uma nova afirmação internacional de Madrid, com algumas cambiantes no próprio perfil externo do país, de que a mais notória terá sido o forte alinhamento político com os EUA, a anteceder a respetiva intervenção no Iraque, em 2003.

Uma momentânea hesitação ocorrida na definição do lugar de Aznar, na mesa onde ontem se sentavam os participantes no debate, trouxe-me à memória uma imagem que revela bem como o protocolo pode ter uma importância decisiva na vida política.

Se olharem para a fotografia acima, todos identificarão os quatro chefes de governo que, em 17 de março de 2003, estiveram na chamada "cimeira dos Açores". Não obstante serem quatro, fica claro que a centralidade da imagem está focada em George W. Bush, que tem à sua direita Tony Blair e, à esquerda, José Maria Aznar, sobre cujo ombro Bush colocava uma amigável mão. O chefe do executivo português, embora anfitrião da cimeira, surge num extremo, claramente secundarizado na imagem de grupo.

Curiosamente, as coisas não eram assim... segundos antes desta fotografia. No início da cena, Aznar estava colocado à direita de Durão Barroso, o que conferia ao chefe do executivo português um lugar central, e natural, num ato que decorria em solo português. Porém, quem tiver observado o filme da época terá verificado que o chefe do executivo espanhol, com o instinto de quem percebe que as fotos têm uma relevância histórica forte, abandonou a companhia do seu colega português e foi colocar-se ao lado do titular da Casa Branca. E, na sua perspetiva, teve toda a razão para o fazer. A prova é que grande parte das fotografias que surgiram posteriormente na imprensa internacional excluíram o então chefe do executivo português (basta ir ao "Google images" para testar isso).

As coreografias protocolares são, por vezes, da maior importância política.

quinta-feira, setembro 22, 2011

Carreiras

Há pouco mais de dois anos, publiquei por aqui, num post, uma história verdadeira. Hoje, apetece-me repeti-la:

Um dia, na segunda década* dos anos 70, a Embaixada de Portugal em Londres recebeu a visita de um militar de Abril, membro do Conselho da Revolução, homem muito estimável, que deixou uma rara imagem de educação, elegância e bom-senso na sociedade política de então.

Como se impunha, o embaixador ofereceu-lhe uma refeição. O repasto correu de forma simpática, na magnífica sala de jantar ornada de pinturas, daquela que é, sem sombra de dúvidas, uma das mais belas residências que Portugal tem pelo mundo.

Num determinado momento da conversa, o nosso militar deixou cair uma confissão: "Vou contar-lhe um segredo, senhor embaixador: um dos meus maiores sonhos foi sempre poder vir a ser, um dia, embaixador de Portugal em Londres". Os tempos políticos, à época, não eram já muito propícios a poder garantir, de mão beijada, sinecuras a quem não possuía experiência e qualificações profissionais adequadas à função. Mas nunca fiando...

E, por essa razão, e perante o silêncio protocolar do embaixador, o militar não ficou sem resposta. Um jovem diplomata presente, homem do mundo, cuja inteligência e arte voltariam, no futuro, a colocar Londres no seu destino, não resistiu e retorquiu: "Tem graça, senhor major. No meu caso, é precisamente o contrário: sempre tive como ambição de vida ser comandante da Região Militar Norte"...

O major, inteligente e perspicaz, entendeu o recado. E mudou de conversa. 

* Ver os comentários

O outro lado do vento

Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe.  Agora que já saiu um novo núme...