quarta-feira, março 16, 2011

Cultura portuguesa

Em Paris, a cultura portuguesa mostra-se bem, por estes dias.

Anteontem, na Fundação Calouste Gulbenkian, Vasco Graça Moura animou uma interessante apresentação de textos de Mário Cláudio e de Anna Luísa Pignatelli (cuja obra eu desconhecia por completo e cuja qualidade me surpreendeu), na presença e em debate com os autores.

Ontem, estive na abertura de uma nova exposição do pintor madeirense Mateus Camacho (na imagem superior), na Galerie Octobre (24 rue René Boulanger, metro République), em exibição até 16 de abril.

Ao final da tarde, a memória de Joaquim Vital foi objeto de uma bela sessão na Maison de l'Amérique Latine, com testemunhos de amigos e escritores. Uma larga e solidária audiência, onde encontrei Júlio Pomar, homenageou o editor e escritor, que "La Quinzène Littéraire" também lembra assim no seu último número. À emoção de alguns sucedeu-se o humor literário de outros, como Salim Jay, que deixou a sala divertidamente intrigada com o teor do romance do egípcio Mohamed Leftah, "Le dernier combat de Captain Ni'mat", uma das últimas edições de Joaquim Vital.

Hoje à tarde, vou tentar estar na abertura da exposição de fotografia de Helena Almeida (imagem inferior), na Galerie Les Filles du Calvaire (17 rue des Filles-du-Calvaire, metro Oberkampf), em exibição até 7 de maio.
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Joaquim Vital e as colónias portuguesas

Foi uma mera coincidência.  Mas, às vezes, as coincidências têm o seu significado.

Ontem, foi o dia em que se registou a passagem de meio século sobre o feroz ataque da UPA (União dos Povos de Angola), que, no norte de Angola, vitimou centenas de colonos portugueses e de cidadão angolanos, naquela que foi a primeira grande manifestação de revolta contra a presença colonial portuguesa em Angola - depois dos acontecimentos da Baixa do Cassange e do "4 de Fevereiro", em Luanda, todos ocorridos no início desse ano histórico de 1961. A partir de então, nada iria ser igual nas colónias portuguesas, desde o Estado da Índia (que seria invadido pela então União Indiana, no final do ano), até à independência completa de Timor-Leste, apenas reconhecida pela ONU em 2002, passando pelo reconhecimento português das independências de Cabo Verde, Guiné-Bissau (que a comunidade internacional já consagrara em 1973), S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, ao longo de 1975.

Ontem, também, teve lugar na Embaixada de Portugal em Paris um cerimónia durante a qual o Estado português atribuiu ao intelectual e editor Joaquim Vital a comenda da Ordem do Infante Dom Henrique. Em nome do Presidente da República, que aprovou esta distinção proposta pelo governo, sob minha sugestão, a viúva e os filhos de Joaqum Vital receberam esta distinção. que lhe era dirigida, a título póstumo, numa cerimónia privada. Foi uma condecoração dada a alguém que saíu de Portugal para não participar nessa mesma guerra colonial, como gesto ostensivo de recusa da política errada de um regime ditatorial que abafava o país.

Portugal viverá com esta dualidade eterna: com a dignidade da revolta de quantos o seu regime oprimia, bem como com a dignidade dos militares portugueses que, sob a nossa bandeira, procuraram contrariar essa vontade, sob ordens do regime de então. Esta dualidade pode parecer quase esquizofrénica, mas é a sina de um país que tem muita história e que tem sabido vivê-la no caldeirão das contradições que ela encerra. 

Ontem, ainda, a viúva de Joaquim Vital, nas simpáticas palavras com que respondeu às minhas, lembrou ser quase irónico que Joaquim Vital tivesse preparado, a meu pedido, um "curriculum vitae", para instruir a proposta de condecoração, precisamente poucos dias antes da sua súbita morte, em Maio de 2010, numa visita a Lisboa.

Líbia (2)

O líder líbio, Mouammar Kadhafi, tem vindo a repetir que não pode ser demitido de nenhum cargo, dado que não exerce nenhum poder executivo. Ontem, li que se comparou à raínha Isabel II, do Reino Unido, afirmando que esta também não é responsável pelas ações do seu governo.

Deve-me ter escapado, mas não me recordo, com precisão, da última conferência de imprensa da soberana britânica.

Líbia (1)

Há duas semanas, vinha a sair de uma farmácia, na avenida da Igreja, em Lisboa, quando ouvi um curto diálogo entre dois cidadãos que caminhavam pelo passeio, um dos quais se afastava, para entrar no estabelecimento:

- Depois, vais lá ter ao café?, perguntou o outro.

- Vou, vou. Só dou aqui um saltinho à farmácia, para saber se ainda têm o Kadhafi.

Quem não soubesse o nome da loja - Farmácia Líbia - não percebia a graça.

Todos somos japoneses

terça-feira, março 15, 2011

O guerreiro

Aquele ministro dos Negócios Estrangeiros, oriundo de um pequeno país europeu, levava-se muito a sério no exercício da Presidência rotativa que, naquele semestre, cabia ao seu país. O tempo era de crise política nos Balcãs, com o presidente Milosevic sob forte pressão internacional, em face das tensões que potenciava na Jugoslávia. Por virtude das quase ridículas contribuições que o Estado que representava poderia dar, em caso de eventuais ações militares em nome coletivo, o ministro tornava-se algo caricato, ao falar como se tivesse, atrás de si, umas forças armadas fortíssimas e, em especial, como se lhe fosse possível mobilizar  os parceiros à escala da sua retórica.

Os "cornetos" sonoros dos jornalistas, em frente a um político, são afrodisíacos verbais. À porta de um hotel de uma capital europeia, com as câmaras e as luzes da ribalta a daram-lhe a importância de que precisava, o ministro fez uma declaração forte, afirmativa, tentando mostrar que estava "in charge". No termo do "statement", avisou, tonitruante e solene, de dedo espetado, para um distante Milosevic: "Quero daqui dizer ao senhor Milosevic, com toda a firmeza, que a Europa tem um limite para a sua paciência e que, se necessário, lhe dará uma resposta à altura das suas provocações". No ar, ficou um indelével cheiro a pólvora oral.

Visivelmente "aos ombros de si próprio", o político recuou as suas tropas diplomáticas para o "lobby" do hotel, sob um ressoar de comentários aprovadores de assessores, que lhe asseguravam que tinha "saído muito bem". E lá foi, deliciado, de peito feito, com um esgar de satisfação, para um merecido copo no bar, depois do "aviso" a Milosevic, que deve ter ficado a tremer, lá pelo palacete em Dedinje. Cada um tem o seu "Bei de Tunis" (ainda haverá Bei, por lá?), mas o ministro não devia conhecer o nosso Eça.

Foi por essa altura que um funcionário português, ocasionalmente presente na delegação ministerial, de forma um pouco impertinente mas escolhendo as palavras, ousou dizer àquele chefe da diplomacia (e sou testemunha privilegiada disso): "O senhor ministro vai perdoar-me, mas, ao falar como falou, com as tropas que o seu país tem, fez-me irremediavelmente lembrar uma frase, que ficou famosa, do capelão do regimento de infantaria da minha terra, no início da guerra colonial, em África, em 1961. Ao discursar ao primeiro contingente que partia para Angola, terminou desta forma lapidar: 'Rapazes! Preparêmo-nos para a guerra! Ide!...'"

Apeteceu-me lembrar hoje esta historieta, quando se assinalam os 50 anos do início da "guerra do ultramar", para uns, da "guerra em África", para outros, e da guerra colonial, para a História.

segunda-feira, março 14, 2011

O abraço de Strauss-Kahn

Há dias, falei aqui de Anne Sinclair, e do seu blogue. Trata-se da mulher do diretor-geral do Fundo Monetário Internacional e putativo candidato socialista às eleições presidenciais francesas de 2012, Dominique Strauss-Kahn.

Hoje vou contar uma pequena história, na qual ele acaba por ser uma involuntária personagem.

Em Junho de 1997, Strauss-Kahn assumiu as funções de ministro da Economia e Finanças do novo governo socialista francês. A liderança da França, que vivia os tempos da muito recente coabitação Chirac-Jospin, tentou rediscutir o então quase finalizado "pacto de estabilidade", o conjunto de regras para regular o acesso e garantir o comportamento dos países no seio da nova moeda única, o euro. A França conseguiu retocar o "pacto", que mudou de nome e passou a chamar-se "pacto de estabilidade e crescimento", vom o objetivo, simultaneamente, de lhe conferir um toque mais "social" e de garantir que a nova liderança francesa deixava a sua marca na decisão final sobre o assunto, nem que fosse por via semântica.

Mas a decisão tomou o seu tempo. O primeiro conselho de ministros das Finanças, o "Ecofin", posterior à subida ao poder dos socialistas franceses ficou, assim, rodeado de uma grande curiosidade, em torno do que nele iria dizer o novo ministro que Paris tinha na pasta, Strauss-Kahn.

Como é de regra nestas reuniões, as câmaras de televisão entram, por uns minutos, na sala, antes do início dos trabalhos, para filmarem os responsáveis políticos, conversando entre si ou já sentados nas respetivas delegações (um dia falarei aqui de alguns "truques" dessa coreografia). A certo passo da cobertura televisiva dessa reunião do Ecofin -  feita, entre outros, pela BBC, Sky e CNN -, as câmaras concentraram-se, com toda a naturalidade, no que era a grande novidade do dia, a entrada na sala de Dominique Strauss-Kahn.

O novo ministro, homem de porte pesado, surgiu, de passo firme, seguido de colaboradores, encaminhando-se para a zona onde se iria sentar a delegação francesa. A meio do percurso, porém, a sua cara espelhou um grande sorriso e viu-se a vedeta política do dia abrir os braços para um abraço de grande intimidade com uma outra figura, de compleição física bastante similar, de cara ornada por uma barba, com  quem trocou palavras de manifesta cordialidade, fruto seguro de amizade. Quem essa pessoa? Ninguém sabia o seu nome e o mistério era tanto maior quanto, à partida, estava excluída a hipótese de se tratar de um outro ministro das Finanças dos "quinze".

Ninguém sabia? Não! Nós, um grupo de portugueses que apreciávamos a cena, numa casa particular, em Bruxelas, sabíamos! Era o Henrique Antunes Ferreira, assessor de imprensa do nosso ministro das Finanças, António Sousa Franco.

Nesse e nos dias seguintes, as televisões universais, à falta de outras imagens sobre o novo homem-forte das Finanças francesas, repetiram à saciedade esse magnífico amplexo, que a todo o mundo pareceu selar o acolhimento europeu ao novo governante francês. E, nessas imagens, lá aparecia sempre o nosso Henrique, para eterna perplexidade do mundo da informação, mas para imenso gáudio dos seus amigos, uma legião heteróclita em cujo seio tenho o gosto de me contar.

O Henrique Antunes Ferreira foi jornalista e é escritor, está reformado das lides políticas mas bem ativo na vida da blogosfera, onde alimenta a irreverente A minha Travessa do Ferreira. Um dia, ele esclareceu-me das razões da sua intimidade com Strauss-Kahn, mas, confesso, já as esqueci. Será que aqui ou na sua Travessa ele poderia recordá-no-las? É que se o percurso de Strauss-Kahn for aquilo que algumas sondagens persistentemente prevêem, o embaixador de Portugal ainda pode, lá para o ano, ter de dar boleia ao Henrique para o Faubourg Saint-Honoré...

Outro lado

Recebi hoje um colega europeu, recém-chegado a Paris. Trocámos impressões sobre o estado da Europa e, naturalmente, veio à baila da conversa a situação político-económica de Portugal, tendo-me ele perguntado sobre o modo como haviam corrido as manifestações do passado sábado, anunciadas na imprensa internacional.

Devo dizer que não foi sem orgulho que lhe descrevi o ambiente de grande civismo que marcou, sem exceção, todos esses eventos, o que é tanto mais de sublinhar quanto eles tiveram uma excecional dimensão e decorreram sob uma agenda coletiva de fortes preocupações.

Acabou por ser o meu colega, e não eu, a comparar esse ambiente com os confrontos públicos, alguns de grande violência, a que se assistiu em quase todos os países afectados por pacotes de medidas de austeridade.

Este é outro lado de Portugal.

Lampedusa

Nas últimas semanas, o debate político interno francês tem estado centrado nos sinais dados por algumas sondagens que colocam Marine Le Pen, líder do "Front National", um grupo político ultra-conservador, como o candidato com maior apoio potencial, na perspetiva das eleições presidenciais de 2012. 

Vale a pena recordar que, em 2002, o pai da atual lider, Jean Marie Le Pen, teve a segunda maior votação na 1ª volta das eleições presidenciais, atrás de Jacques Chirac, deixando para trás o candidato socialista. A França não esqueceu ainda esse "terramoto" político, pelo que ele não deixa de estar presente na memória coletiva, no caminho para 2012.

O "Front National" tem uma agenda política centrada nas questões de segurança, imigração e discussão das temáticas da interculturalidade em França, mas igualmente numa rejeição do euro e na defesa de fortes medidas protecionistas. A nova líder do partido apresenta, contudo, uma imagem menos radical que o seu pai, o que, segundo alguns observadores, estará na origem da sua maior popularidade e do aparente crescimento na aceitação pública do seu partido, a qual será testada nas eleições cantonais dentro de uma semana.

Hoje, Marine Le Pen desloca-se à ilha italiana de Lampedusa, local de desembarque prioritário das vagas de migrantes africanos, onde abordará essa mesma temática.

Confesso que, ao ouvir falar de Lampedusa e ao observar a evolução recente da imagem do "Front National", não pude deixar de me lembrar da clássica frase posta na boca de Falconeri, no romance "O Leopardo", de Giuseppe Tomasi de Lampedusa: "Se queremos que as coisas permaneçam como estão, as coisas têm de mudar" ("Se tutto deve rimanere com'è, è necessario che tutto cambi").

domingo, março 13, 2011

Opções

De há uns anos para cá, à medida que me dei conta da real complexidade de algumas questões, fui deixando de ter uma opinião firme, "de café", sobre certas temáticas que dividem o país.

Por exemplo, não faço a mais leve ideia se Lisboa precisa ou não de um novo aeroporto e, em caso positivo, se ele deve ir para a Ota ou para Alcochete. Também não tenho opinião sobre a necessidade de uma nova ponte sobre o Tejo, como também a não tenho sobre o TGV, dado que já vi argumentos definitivamente convincentes sobre teses diametralmente opostas, quer em relação à iniciativa em si, quer quanto aos cenários de construção possíveis. E eu sei lá se, em matéria de policiamento, deve haver super-esquadras ou unidades de proximidade! E será que os centros de saúde devem fechar à noite ou não?

Alguns conhecidos, ao verem-me "fugir" deste debates polarizados, devem achar que estou a fazer um "número" e que, lá no fundo, o que eu quero é reservar a minha opinião, na busca de me manter consensual e não polémico. Enganam-se redondamente e só provam que não me conhecem bem.

Com toda a sinceridade, devo dizer que ganhei este estado de progressivo "agnosticismo", sobre um número cada vez maior de temáticas "fraturantes", quando passei pelo governo do país e aí percebi que as grandes questões, sobre as quais todos somos chamados diariamente a ter uma opinião "impressionista", têm, na realidade, uma elevada complexidade, muito superior àquela que o simples tratamento mediático permite acompanhar. Foi isso, e nada mais, que me foi conduzindo a uma cada vez maior humildade opinativa. Mas que fique bem claro que não pretendo que esta minha atitude seja a correta. Cada um que pense por si.

Porém, devo dizer que muito me surpreendo que haja alguns "génios" que, nas colunas ou nos écrans, falam de tudo com ar de cátedra, do trânsito ao futebol, do défice à literatura, do ambiente à fiscalidade. Feliz pátria que tais filhos tem! E crédulo país que ainda os ouve.

Vem isto hoje a propósito do Japão, do maremoto e, por via dele, da energia nuclear. A chamada opção nuclear é já um tema vetusto em Portugal. Há anos que se discute se devemos, ou não, construir centrais nucleares. O debate já teve dimensões de radicalidade político-ecológica que o tornaram quase tabu, para, depois de isso, e por "luas" de opinião, voltar a reaparecer, com maior serenidade. Já ouvi a voz ponderada de um técnico competentíssimo, como Nuno Ribeiro da Silva, explicar que a relação custo/benefício dessa opção, para um país como o nosso, é profundamente errada. Há semanas, jantei em Paris com o empresário de sucesso Patrick Monteiro de Barros, que, com números e argumentos fortes, garante exatamente o contrário. 

Em que ficamos? Melhor, onde fico eu? Em nenhuma parte, devo confessar. Se a tragédia conjuntural do Japão me leva a aumentar as dúvidas sobre a opção nuclear em Portugal, país de onde não estão afastados riscos muito sérios em matéria sísmica, bem como a total ausência de respostas credíveis para o futuro dos dejetos, a verdade é que nós já temos uma forte ameaça nuclear, com as centrais espanholas aqui ao lado, com as eventuais radiações num desastre a não respeitarem fronteiras. E se o petróleo for por aí acima em matéria de custos? E se as energias renováveis se confirmarem limitadas na sua produção? E se o custo de exploração delas (eólica, fotovoltáica, maremotriz) se provar economicamente irracional? Se os riscos já existem aqui ao lado, e não podem ser evitados, porque não optar por ter essa energia? Mas, por outro lado, não há um limite claro na contribuição possível da produção nuclear para o nosso consumo total, que, aliás, tem custos de investimento muito elevados? E como superar o debate que iria levantar-se sobre a localização das centrais, ao lado do qual o caso da co-incineração iria parecer uma brincadeira de crianças? É que, num país com a nossa dimensão, o chamado efeito NIMBY ("not in my backyard") tem um peso ainda mais importante.

Mas, afinal, sou ou não a favor do nuclear em Portugal? Sei lá! Uma vez mais, não tenho opção.

Não deixa de ser angustiante, mas ao mesmo tempo dá-me um grande sossego, pensar que, cada vez mais, só falo daquilo de que julgo saber alguma coisa. O resto, deixo para os sábios figurantes do "Prós e Contras".

sábado, março 12, 2011

Telefonema


Foi nos anos 70. Estava sozinho na minha sala de trabalho, no MNE. Os restantes colegas haviam já saído para o almoço.

O telefone tocou. A voz masculina era de alguém jovem. O tom era algo agreste, sem vontade de expressar um mínimo de cortesia. O pedido feito era relativamente simples de satisfazer: fornecer o número de telefone de casa de um determinado embaixador português, no estrangeiro.

Estranhei o facto de a pessoa ter ligado exatamente para o serviço onde eu estava colocado, embora nós nos ocupássemos das relações económicas com a área regional onde a embaixada se situava. Porém, as telefonistas ou o serviço de pessoal do MNE seriam as entidades mais indicadas para dar aquela informação. Referi isso ao meu interlocutor, até porque não estava a apreciar a forma pouco delicada como ele se me dirigia, mas igualmente porque os números de telefone das residências dos embaixadores não eram públicos, pelo que a regra era não serem indicados, salvo em circunstâncias justificadas.

- Sou filho do embaixador. Ou você me quer dar o número do telefone ou não quer!

Voltei a não apreciar o tom mas, porque conhecia o pai, um homem amável e muito cordial, fui procurar o número. Ditei-o, o filho do embaixador repetiu-o e desligou o telefone, sem agradecer. Imagino que terei ficado furioso, mas logo esqueci o assunto.

No dia seguinte, à conversa com colegas, um deles disse-me:

- Já sabes do filho do embaixador "fulano"? Suicidou-se, ontem.

- A que horas? - perguntei, para legítimo espanto de todos, intrigados com a minha especiosa curiosidade.

- Parece que foi a meio da tarde.

Desde esse dia, procuro recordar a voz desse rapaz, que vivia sozinho em Portugal. Devo ter sido das últimas pessoas com quem ele falou. Terá chegado a contactar o pai? Nunca tive coragem de lhe perguntar e agora é tarde, porque também ele já desapareceu há muito, aliás de uma forma com o seu quê de trágico.

A condição diplomática introduz, às vezes, fortes tensões nas famílias, fruto de separações a que obriga, dos isolamentos que provoca e dos desequilíbrios que potencia. A instável vida dos diplomatas está longe de ser o mar de rosas que alguns, de fora, mitificam.

Juventude preocupada

Um grupo de cerca de trinta jovens portugueses levou hoje a cabo uma manifestação, em frente à nossa Embaixada em Paris.

Fui falar com os manifestantes, por forma a saber, de viva voz, o que tinham para nos transmitir. As principais ideias que me foram expressas centraram-se, como era de esperar, na precariedade laboral que se vive em Portugal, em contraste com a situação que encontram em França, bem como a recusa em ter de aceitar que a emigração possa ser a única forma de resolver os problemas da sua vida, para além de outras questões que se prendem com os desequilíbrios existentes na sociedade portuguesa contemporânea.

Foram momentos de diálogo sereno e construtivo, em que, do meu lado, colhi um conjunto de legítimas preocupações, que vou transmitir em maior detalhe a quem pode avaliar soluções capazes de lhes dar uma resposta.

Diplomacia democrática

É nestes tempos em que o nome de Portugal e da situação político-económica portuguesa anda nas bocas do mundo que será talvez oportuno recordar as obrigações de uma diplomacia democrática.

Tenho para mim que uma das menos edificantes e mais indignas atitudes que um diplomata pode assumir, perante interlocutores estrangeiros, é enveredar pela crítica às autoridades do país que representa. Mas, devo dizer, torna-se igualmente triste ouvi-los criticar, em público, as forças da oposição que, com toda a legitimidade democrática, são adversários dos poderes instituídos.

Ambas as atitudes relevam, pura e simplesmente, de uma grave falta de sentido profissional. O interlocutor estrangeiro respeita o diplomata que, independentemente das suas ideias pessoais, sabe assumir uma atitude equilibrada na análise da situação política interna existente no seu país, que é capaz de expor, com rigor, equilíbrio e equanimidade, os sucessos ou insucessos do Estado que lhe cabe representar, que defende com empenhamento os interesses deste mas não camufla conflitualidades ou dificuldades existentes no seu mundo político interno, que não edulcora, ao absurdo, o que de negativo possa existir na sociedade que lhe cabe representar.

Já me confrontei, no meu percurso profissional, com colegas estrangeiros de todo o tipo. Convivi com os cegos militantes, para quem os respetivos dirigentes são o máximo existente à face da terra, os quais, no seu parecer sectário, são obrigados a sofrer os custos de uma oposição cuja ação quase ilegitimam, apenas porque esta não cai no seu goto pessoal. Conheci os mal-dizentes crónicos, que remoem em público, dia-após-dia, críticas ou ironias, quando as autoridades eleitas não são da sua cor política, acusando-as de todos os malefícios pátrios, suspirando por uma reviravolta que ponha os do "outro lado" no poder. Num registo mais corporativo, dei às vezes de caras com aqueles que acham que a política externa do seu país é apenas um lamentável desastre, que estão condenados a representar "malgré eux", atitude muitas vezes mobilizada por ódios acumulados ou por queixas profissionais.

Assisti a muitas conversas com todo este tipo de gente e - garanto! -  sempre pude observar a pena que a sua atitude provoca nos interlocutores, em especial em colegas de países onde a diplomacia democrática se pratica e se vive, com naturalidade e sentido de Estado. Onde esses colegas procuram exibir, de forma  mais ou menos espalhafatosa, o que pretendem ser uma hiperfranqueza crítica - face a instituições, forças políticas ou figuras do quadro democrático do seu país -, os estrangeiros que os ouvem apenas nisso vêm deslealdade e ausência de um espírito profissional. Às vezes sorriem, mas, por detrás desse sorriso, está sempre um esgar de desprezo.

A diplomacia democrática é o estado supremo do profissionalismo em matéria de representação externa. Vale a pena recordar isto, nos dias que correm.

"Latitudes"

Chama-se "Latitudes - cahiers lusophones" uma revista editada em França, que vai quase em 40 números editados, com um notável trabalho na difusão das culturas que se expressam em língua portuguesa.

Iniciativas como estas, desinteressadas e empenhadas, terão sempre da minha parte todo o apoio que for possível garantir, não obstante os tempos financeiros difíceis que atravessamos. Ontem, com dois dos seus responsáveis, estive a gizar algumas iniciativas que permitam à Embaixada apoiar o seu trabalho futuro.

sexta-feira, março 11, 2011

O assalto

Os adidos de embaixada, categoria que os ingressados na carreira diplomática têm durante os primeiros dois anos de serviço, frequentam, por alguns meses, um curso profissional, em que são docentes diplomatas mais velhos, em serviço ou fora dele, promovido pelo Instituto Diplomático do nosso ministério.

Aqui há uns anos, os novos adidos assistiam a uma palestra de um velho embaixador, homem bem falante, bom contador das coisas da vida, que ilustrava as suas décadas de trabalho com o relato de episódios que entendia exemplares e dignos de nota. Os adidos ouviam com atenção e apreço o seu discurso ameno, seduzidos pela coreografia verbal com que o velho diplomata envolvia as suas experiências pelo mundo, tidas como dignas de registo, para adubar a inexperiência dos auditores. Era um mundo de pequenas aventuras, com cenários muito diversos daqueles que a sua vida lhes proporcionara. Embora os tempos fossem naturalmente outros, não deixava de ser interessante ter acesso àquelas histórias, cujo somatório acaba por tecer a nossa cultura corporativa comum.

Naquele dia, o diplomata relatava um episódio passado na residência que, em tempos idos, ocupara numa capital africana, quando aí era encarregado de negócios, nos anos 60. Explicava ele que se tratava de edifício isolado, com escassa segurança, na periferia da capital, rodeado de um amplo jardim,. Os riscos não eram muito elevados, porque a criminalidade local era então escassa, mas, apesar disso, já por mais de uma vez, houvera indícios de que a casa fora rondada por potenciais assaltantes.

Uma madrugada - contava ele - ouviu, distintamente, ruídos provindos do outro lado da casa, onde habitava sozinho. Pôs-se à escuta e percebeu uma sussurada conversa, no exterior do prédio, entre pessoas que, claramente, estavam já a tentar forçar uma porta ou uma janela. 

A situação revelava-se complexa. Os empregados viviam noutro edifício, mais distante, e, claramente, não tinham ouvido chegar os assaltantes. Embora houvesse quem, em tempos, lhe tivesse recomendado que comprasse uma arma, o bom-senso do diplomata levara-o a não ir por esse perigoso caminho. Naquele instante, porém, perguntava-se sobre que opção tomar.

O relato tinha foros quase fílmicos. Os adidos olhavam, atentos, para o velho embaixador, que, para ilustrar a história, vagueava pela sala, frente a eles, de gesto largo e fácies grave. A certo passo, estacou e inquiriu: "Alguém tem uma ideia do que eu fiz, na ocasião?". Fez-se um silêncio, apenas entrecortado por uns declinantes murmúrios, com opções de ação tão pouco ousadas ou imaginativas que não chegaram a ser formuladas em voz alta.

É, nesse instante, que, com um sorriso, o embaixador revelou a sua "defesa":

- Caros colegas, é muito fácil. Fui à casa de banho!

A sala estacou de espanto. À casa de banho?! Para quê?

- Meus amigos. É elementar! Puxei a autoclismo. Em África, no silêncio profundo da selva, o fragor de um autoclismo a descarregar tem a força explosiva do tiro de um canhão!

A sala escangalhou-se em gargalhadas e a história passou a fazer parte dos anais divertidos da nossa casa.

Notícias

Há um fenómeno curioso na comunicação social: a crise política na Costa do Marfim ficou "escondida" pelas sublevações na Tunísia e no Egipto, logo seguidas da revolta na Líbia. Agora, é esta última situação que é obnubilada pelo sismo no Japão. O que será que nos fará esquecer o Japão?

Gastronomia portuguesa

Foi há já quase quatro décadas que visitei, pela primeira vez, o restaurante viseense "O Cortiço", onde, à época, proponderava a figura jovial e acolhedora de "dom" Zeferino, entretando desaparecido. Depois disso, sem regularidade mas sempre com muito gosto, passo, às vezes, por lá.

Hoje, vim encontrar essa excelente cozinha beirã na inauguração da semana gastronómica que a Rádio Alfa, em Créteil, nos arredores de Paris, organiza desde há sete anos, e à qual traz expoentes da restauração nacional.

Esta iniciativa do comendador Armando Lopes, uma personalidade central da comunidade portuguesa em França, onde chegou fará este ano meio século, constitui uma inestimável colaboração para a divulgação da boa culinária portuguesa neste país.

quinta-feira, março 10, 2011

George Soros

George Soros é uma curiosa personalidade do mundo da finança internacional. Especulador e milionário americano, nascido na Hungria, é, simultaneamente, uma figura que reflete com profundidade sobre o mundo político-económico. Tem sido objeto de muitas críticas, pelo caráter das suas atividades financeiras, que lhe valeram já algumas acusações judiciais. No seu lado de filantropo cívico, desempenhou, nos anos 90, um interessante papel, através da organização "Open Society Institute", no apoio às forças democráticas dos países do centro e leste europeus.

Há muito que o leio e já foram algumas as vezes em que o ouvi - de Nova Iorque a Estrasburgo, de Londres a Genève. Tal como ontem aconteceu, ao final da tarde, numa organização da Fundação Calouste Gulbenkian, aqui em Paris, onde manteve um interessante debate com um destacado empresário francês, Henri de Castries, presidente da seguradora AXA.

As regras de assistência a este tipo de debates impedem que se cite o que neles é dito, embora possa ser adiantado que Soros, pelas ideias que defende, está muito longe de ser um liberal fundamentalista, podendo mesmo classificar-se, sem dificuldade, numa linha neo-keynesiana. Filosoficamente, afirma-se um seguidor de Karl Popper, o que, conhecidas as vantagens que o mercado lhe traz, talvez justifique o "labéu" liberal que carrega.

O único "leak" que é possível fazer do que ontem disse, porque foi a única coisa explicitamente "on the record", foi a rejeição da acusação de ter participado no "infamous" jantar (reportado pelo "Wall Street Journal"), em Nova Iorque, em Fevereiro de 2010, que teria reunido dirigentes de "hedge funds", onde, alegadamente, teria sido discutido um ataque especulativo contra o euro, no início do agravamento da crise grega, em Fevereiro do ano passado. George Soros disse ao auditório que isso não passava de uma "urban legend", que podia garantir que, na ocasião, o tema não ocupou mais de cinco minutos de discussão e que havia um pequeno pormenor, quiçá dispiciendo: não tinha estado presente nesse jantar! Para acrescentar que essa foi mais uma "invenção" típica dos jornais de Rupert Murdoch.

Um dia de otimismo

Há dias em que o nosso otimismo com o futuro do país se acentua. Hoje foi um deles.

Ofereci um almoço ao responsável da Embraer para a Europa, baseado aqui em Paris. Porque estive ligado ao processo de negociação, iniciado em 2006, que trouxe esta empresa brasileira de construção de aviões para Portugal, mantenho um grande interesse no projeto, que prevê uma fábrica em Évora, cuja construção se concluirá no final deste ano, com equipamentos em início de produção de equipamento em Agosto de 2012, envolvendo mais de quatro centenas de postos de trabalho. Sei de outras empresas, inclusivamente francesas, que têm demonstrado o seu interesse em explorarem as possibilidades de crescimento deste "cluster" aeronáutico em Portugal.

A certo passo da conversa, disse ao responsável da Embraer que, se viesse a considerar necessário, estava à disposição para facilitar, na medida das minhas possibilidades, a resolução de qualquer problema com que a empresa se defrontasse no seu trabalho nosso país. A resposta foi muito clara: a Embraer tem vindo a ter, por parte de todas as entidades oficiais portuguesas com quem tem tido contactos, desde o início do projeto, todas as facilidades requeridas e permitidas por lei, tendo podido contar com uma disponibilidade "inexcedível e constante" por parte da AICEP e do município de Évora, numa demonstração de cooperação absolutamente modelar.

Às vezes, acontecem-nos dias assim!

Mais "duas ou três coisas"

A jornalista francesa Anne Sinclair, que foi uma figura importante do jornalismo televisivo francês, é casada com o diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn. O seu marido, conhecido na imprensa francesa pela sigla DSK, é um dos nomes mais falados como podendo vir a ser o candidato socialista às eleições presidenciais francesas, em 2012.

Sinclair alimenta, dos Estados Unidos, onde vive, um blogue, hoje cada vez mais popular. Deu-lhe o nome de "Deux ou trois choses vues de l'Amérique". Em 1997, havia escito um livro intitulado "Deux ou trois choses que je sais d'eux".

Boas escolhas "godardianas" para títulos...

quarta-feira, março 09, 2011

Padura e Trotsky

Um romance do escritor cubano Leonardo Padura, "O homem que gostava de cães", está a ter apreciável êxito em França.

Perdi a ocasião do seu lançamento em Paris e, com isso, a oportunidade de reencontrar Padura, com quem tive uma longa e interessante conversa em Havana, há quase quatro anos, num jantar proporcionado pelo meu amigo e embaixador Mário Godinho de Matos.

Padura é uma personalidade suave, com um sorriso amigável e um modo muito sereno de olhar para a realidade do seu país. Nessa conversa em 2007, demos conta que havíamos vivido em Luanda ao mesmo tempo, na primeira metade dos anos 80. O escritor fizera parte dos "cooperantes" que Cuba enviava para apoio ao regime angolano. A certo passo da noite, perguntei-lhe se, como então se especulava, esses cubanos expatriados tinham fortes incentivos económicos, bem como de apoio às famílias que deixavam para trás, como compensação pela execução da sua missão. Confirmou-me que essas atividades lhes proporcionavam, de facto, algumas vantagens mas, enfatizou, nesse tempo havia em Cuba um alargado espírito de "missão internacionalista", que mobilizava muitos dos seus compatriotas. Para acrescentar, muito realisticamente, que, nos dias que correm, esse sentimento havia desaparecido quase por completo, pelo que era praticamente impossível recrutar técnicos cubanos para ações no exterior numa base predominantemente ideológica.

Nessa bela noite de Havana, recordo bem que Padura nos falou num trabalho em que andava envolvido, em torno de documentação de Ramón Mercader, o homem que, no México, em 1940, assassinou Trotsky, às ordens de Stalin. Mercader viveu a parte final da sua vida em Havana, onde morreu, em 1978, tendo mais tarde sido sepultado, com honras soviéticas, em Moscovo.

O livro que Padura acaba de produzir centra-se na figura de Mercader. Um amigo francês, que esteve presente no lançamento da obra em Paris, que teve lugar na Casa da América Latina, dizia-me, há dias, que ele e outros acompanhantes haviam ficado siderados quando um jornalista francês ("na casa dos 40 anos", esclareceu) lhes perguntou se sabiam como se soletrava o nome de "um tal Trotsky", que Padura referira na sua intervenção. Foi pena que ninguém lhe tivesse feito notar que, na realidade, ele ouvira mal, que Padura pronunciara "Bronstein"...

De facto, o mundo já não é o que era...

Economia

A Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa, uma estrutura jovem mas que tem desempenhado um trabalho muito positivo de apoio e agregação dos empreendedores que ligam economicamente Portugal e a França, realizou hoje, na Embaixada, a sua assembleia geral anual. Desde que cheguei a Paris, entendi que abrir-lhe as nossas portas era o contributo mínimo que poderia prestar, para além do encorajamento que, ao longo do ano, procuramos manifestar ao conjunto das suas atividades.

No início da assembleia, falei aos associados do cenário económico em Portugal. Não escondi as dificuldades existentes, mas procurei sublinhar que estamos a fazer o nosso trabalho "de casa", com rigor, com transparência, com os números sobre a mesa, porque é à luz deles, e só deles, que queremos ser julgados. Não temos a tentação de esconder a crise que atravessamos atrás da crise internacional, mas recusamos que esta seja iludida no cômputo geral da situação, como às vezes pretendem alguns avaliadores de "rating". Falei das empresas, do otimismo que tenho visto da grande parte das que por aqui contacto, da contribuição que têm dado para os números excecionais que a nossa exportação tem revelado em tempos recentes. Abordei a questão da nossa banca, da leitura que sobre ela se faz internacionalmente e do modo como a sua situação se liga com as perspetivas de evolução da nossa dívida soberana. E falei também da Europa, das suas novas fragilidades, das suas hesitações e da esperança que continuamos a colocar nesse magnífico projeto em que nos continuamos a rever. No fundo, deixei claro que, para que as dificuldades se atenuem, todos temos de trabalhar em conjunto, remando para o mesmo lado.

"Ler"

A revista "Ler", por ocasião da publicação do seu nº 100, pediu a 100 pessoas que formulassem, em poucas palavras, uma ideia para o futuro.

Aqui vai a minha contribuição: 

"A internet tem-se revelado um decisivo instrumento para a comunicação aberta entre os cidadãos, um motor de difusão cultural e um insubstituível suporte para as redes de livre informação. A comunidade internacional deveria passar a qualificar o livre acesso informático como um dos novos Direitos Humanos."

"Cavalos de Tróia"

A imprensa tem-se feito amplo eco da notícia de que os ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros franceses foram atacados por "piratas" informáticos, que terão colocado nos respetivos sistemas "cavalos de Tróia", que permitem o acesso ao conteúdo das informações acumuladas, podendo mesmo gerir parcialmente esses equipamentos. O debate prossegue agora em torno de quem poderia estar interessado nessa intrusão.

Tenho uma experiência pessoal muito concreta de uma operação idêntica, de que foi objeto o meu computador, em Maio de 2003, ao tempo em que vivia em Viena. Uma voz amiga deu-me então discreto conhecimento de que informações oriundas do meu sistema informático estavam a ser "analisadas" por terceiros. Através de uma peritagem técnica, vim a apurar que um "cavalo de tróia" tinha sido introduzido num dos computadores, à distância, através de um processo de "bombing" informático, que tinha conseguido ultrapassar o "firewall". Denunciada e exposta a marosca - nomeadamente por um artigo de imprensa -, os responsáveis pela operação recolheram, precipitadamente, a sua "pidesca" operação. Como os deuses não dormem, tempos posteriores vieram a provar que "os cavalos (de Tróia) também se abatem". Sem ou com cunhas. 

terça-feira, março 08, 2011

"Tradução" automática

Alguns leitores têm-se mostrado divertidos com certas "soluções" que resultam da utilização do mecanismo de tradução automática que passou a estar colocado no blogue (clique, à direita, em "traduire" ou "translate" para ver a versão francesa ou inglesa do blogue).

O objetivo deste sistema (gerido por uma máquina, sem intervenção humana) é proporcionar a leitores que não tenham o português como sua língua a possibilidade de perceberem, em termos muito gerais, o assunto que é abordado em cada post. Como é óbvio, não se trata de uma verdadeira tradução, mas sim de uma mera aproximação, quase palavra-a-palavra. Devo, porém, dizer que considero o saldo global muito positivo, se aceitarmos o limitado objetivo do exercício.

Reconheço que, de facto, alguns resultados obtidos pelo mecanismo acabam por ser verdadeiramente hilariantes. Por exemplo, e como notou um atento comentador, a frase "fui beber uma bica, ali ao lado" surge, em inglês, como "I was drinking a fountain, next door"...

Diplomacia europeia

Ainda neste dia internacional da Mulher, é uma excelente notícia saber que a diplomata portuguesa Ana Paula Zacarias, que já chefiou a nossa missão na Estónia e representava Portugal no Comité Político e de Segurança, em Bruxelas, acaba de ser escolhida, por concurso público aberto aos diplomatas dos 27 países da União Europeia e aos funcionários das suas instituições, para chefiar a missão da UE em Brasília. Ana Paula Zacarias conhece bem o Brasil, onde já serviu, como Cônsul em Curitiba.

Trata-se do primeiro membro da carreira diplomática portuguesa a ascender ao lugar de chefe de uma missão da União Europeia, sendo que a representação no Brasil é considerada uma das mais importantes do novo Serviço Europeu de Ação Externa. Dois outros funcionários de nacionalidade portuguesa, João Vale de Almeida e Cristina Martins Barreira, neste caso oriundos das instituições europeias, dirigem já, desde há meses, as missões junto dos EUA e do Gabão.

Um abraço amigo e votos de boa sorte, Ana Paula!

8 de março

Faz hoje precisamente 10 anos. Lembro-me bem que desci a pé a rampa do palácio de Belém, depois do ato de transição, e fui beber uma bica, ali ao lado. Já sem horas, nem audiências. Acabara uma experiência política de mais de cinco anos. Sentia ter cumprido "com lealdade, as funções que me (haviam sido) confiadas", nesses quase 2000 dias!  E voltava a poder fazer o que, decididamente, mais gosto e sei fazer.

Nesse dia, acabavam as infernais horas perdidas em aeroportos e aviões ("ao menos, aqui não há telemóveis"), as refeições à pressa, os insípidos quartos de hotel, a leitura ansiosa dos jornais ("olha! Há aqui uma crítica à nossa política europeia"), as maratonas bruxelenses, a análise, pela madrugada dentro, dos diplomas para aprovar "em Conselho", a agenda diária cada vez mais esgotante. Mas, também, as coisas conseguidas, os magníficos e dedicados colaboradores (em especial colaboradoras, já que a esmagadora maioria foram mulheres, e hoje é o dia delas!), os muitos amigos descobertos e conquistados, a certeza de que as posições portuguesas foram sempre defendidas tão bem quanto sabia e me foi possível, o privilégio de poder ter tido um "outro" olhar sobre o país.

Mas não se confunda nada disto com poder. Na maioria dos casos, neste tipo de posições, em termos de exercício efetivo de poder, o que se pode fazer é relativamente pouco: ou não há dinheiro, ou não há gente adequada e disponível, ou o peso do "sistema" nos impede, ou é a lei que não deixa. E, quase sempre, não se pode aplicar a máxima de Correia de Oliveira: "o que é legal faz-se por despacho, o que é ilegal faz-se por decreto". Não é assim, em democracia.

Olhando hoje para trás, sem a mais leve nostalgia, reconheço que foi um período muito interessante, embora, com toda a certeza, bem mais longo do que teria sido desejável. No geral, não me arrependo minimamente do que fiz, mas, em perspetiva, soubesse eu, à partida, o que sabia à saída, faria algumas coisas de uma forma bem diferente. Mas, em política, tal como no futebol, "prognósticos só no fim do jogo".   

segunda-feira, março 07, 2011

Transferências televisivas

As nossas televisões entraram numa maré de transferências, na sua área informativa. Os "craques" são "roubados" de umas às outras, a salários que a moral pública acha conveniente esconder, não vá alguém lembrar-se da crise.

Não está em causa a competência dessas pessoas, caso contrário não seriam recrutadas por tais vultuosos valores. São profissionais experimentados, com provas dadas. Só podemos desejar que façam um bom trabalho, que mostrem equilíbrio e isenção de julgamento, que consigam colocar-se acima quer das pulsões populistas quer de outras mais domésticas.

Neste tempo de transição - e valendo-me do meu estatuto de estrangeirado -, gostaria de lembrar às nossas figuras da informação televisiva duas realidades que por aqui se vêem e que por aí se não praticam:
  • os telejornais, em sociedades modernas, não duram mais de 30 minutos, com os diretos a raramente excederem um minuto. E não conheço país do mundo onde os treinos dos "grandes" do futebol sejam objeto de cobertura diária nos noticiários generalistas à hora de almoço.
  • nenhum regime democrático que eu conheça coloca os temas políticos do alinhamento noticioso a serem comentados, obrigatoriamente, por porta-vozes de todos os partidos representados no seu parlamento. É que, salvo em Portugal, há uma diferença entre informação e tempo de antena.
Infelizmente, estou certo que nenhum dos responsáveis pela nossa informação televisiva vai ter coragem para acabar com estas duas tristes realidades, entre outras típicas do "nacional-televisionismo" luso. Melhor: adivinho mesmo que terão sido escolhidos porque, implicitamente, se sabe que não ousarão tocar neste estado de coisas.

País em défice

É necessária uma experiência intergeracional para se entender bem o papel desempenhado, entre nós, pelo festival musical da Eurovisão. Há menos de um ano, falei aqui de tempos idos e do modo como o país se colava emocionalmente aos seus intépretes, eleitos como valentes guerreiros, enviados para alheios e hostis terrenos de luta.

Esse período passou, hoje o festival da Eurovisão vale apenas o que vale e há anos em que nem noto que passa na televisão. Mas talvez poucas coisas simbolizem melhor o "país em défice" em que hoje vivemos do que a qualidade dos intérpretes que, este ano, "representarão" as cores portuguesas. 

Ao observar o vídeo do grupo, sinto-me tentado a reconhecer que ele é, de facto, a melhor tradução lusa dos "Village People", que pretendem caricaturar. E ao ler a "letra" da canção, que nos traz os tempos de abril numa versão "Zé Chunga", sinto saudades do "Serafim Saudade". 

Se não fosse obsceno misturar coisas sérias com estas patetices, apetecia-me lembrar o "18 Brumário de Luis Bonaparte", onde Karl Marx escrevia que a história acontece como tragédia e repete-se como farsa. Este, pelos vistos, é o tempo dos farsantes.

... e a Líbia aqui tão perto

A embaixada portuguesa em Paris ocupa, quase por completo, um pequeno quarteirão triangular (poderá dizer-se isto?). E escrevo "quase" porque um dos cantos não nos pertence, é um edifício propriedade do governo líbio. Até há meses, funcionou ali a sua embaixada em França, que entretanto se mudou para outras instalações. Como curiosidade, note-se que a Líbia é o único país do mundo que não designa por embaixadas as suas representações diplomáticas. Aqui em Paris, por exemplo, é o "Bureau Populaire de la Grande Jamahirya Arabe Libyenne Populaire Socialiste".

Há dias, no edifício, aparentemente não ocupado, surgiu pendurada uma estranha bandeira, que causou perplexidade no nosso pessoal. Acabo de passar por lá e verifiquei que se trata da velha bandeira líbia, usada após a independência e anterior à revolução de 1969, que levou ao poder o coronel Mouammar Kadhafi. Essa é a bandeira que tem sido utilizada pelos revoltosos no país e dela deixo aqui registada a imagem.

domingo, março 06, 2011

Medeiros Ferreira

José Medeiros Ferreira é uma personalidade marcante da democracia portuguesa. Dirigente do associativismo universitário, na crise académica do início dos anos 60, e opositor à ditadura, viria a fazer um tempo de exílio, de onde, promonitoriamente, teorizou o modelo de revolta que o 25 de abril viria a seguir. Foi ministro dos Negócios Estrangeiros e deputado, dedicando-se, em paralelo, a uma carreira académica de mérito na área da historiografia contemporânea, com as questões militares e as relações internacionais no centro prioritário dos seus interesses. 

O seu pendor heterodoxo e a insistência, quase obsessiva, na livre independência crítica poderão ter contribuído para que tivesse passado ao lado de posições que merecia ter ocupado na nossa vida pública, no que o país muito teria beneficiado. Esse mesmo tropismo, associado a uma gestão peculiar de algumas das suas opções cívicas, colocou-o, frequentemente, em conflito com certas personalidades ou linhas políticas, obrigando-o a percursos bastante solitários. Mas, paradoxalmente, esse seu "defeito" é a face mais sedutora da sua forte identidade pessoal, servida por uma inteligência fina e aguda, mas quase sempre pouco complacente, como as suas aventuras pela blogosfera e pela imprensa espelham.

No passado, nem sempre estivémos de acordo, mas julgo que nos encontraremos sempre numa certa forma de ver o país e os seus interesses, no preito à amizade e na alegria de saber que ambos pensamos pela nossa própria cabeça, sem receio de dizer alto as ideias, mesmo que elas pontualmente não coincidam ou possam incomodar terceiros. E quem partilha o mesmo barbeiro pode também dar-se ao luxo de sair por vias opostas na 2ª circular.

Neste momento em que um livro celebra o seu importante percurso académico, tendo servido de pretexto para ter sido homenageado por um grupo de colegas e admiradores, aqui deixo um forte e solidário abraço ao José Medeiros Ferreira.

A tia Zé e a Líbia

Ao ver as notícias sobre os combates na cidade líbia de Brega, não pude deixar de lembrar-me da minha velha tia Zé.

Estávamos em torno da televisão, nesse agosto de 1968, em Viana do Castelo. As imagens eram da entrada das tropas soviéticas em Praga, com a subida dos tanques pela praça Venceslau, sob protestos populares.

A tia Zé vivia, desde sempre, num mundo diferente, um pouco alheado, distante daquele que nos mobilizava, frente ao televisor. Não era dada a seguir eventos noticiosos, nem  sentia estímulo para participar em quaisquer conversas que excedessem o quadro familiar ou das amizades. Por uma vez, porém, os nossos comentários e exclamações, bem como a notória brutalidade do que observava, tê-la-ão feito compreender que alguma coisa não ia bem, lá pelo mundo exterior. A certo ponto, numa pausa do noticiário, ao entrar na sala com o tradicional café de saco, de cuja feitura não prescindia, a velha senhora deixou escapar: "As coisas estão mal lá por Braga, não estão?"

Se a boa da tia Zé, com o seu mau ouvido, não tivesse deixado, há décadas, de cuidar dos dias dos outros,  imagino que hoje, ao escutar notícias sobre as movimentações militares em torno de Brega, voltaria a inquietar-se.

sábado, março 05, 2011

Juventude


Leio que os três promotores iniciais da manifestação de jovens prevista para dia 12 de Março, destinada a consagrar o protesto da chamada “geração à rasca”, são licenciados em relações internacionais. Sou levado a supor que algum deles possa ter pensado que, um dia, chegaria a ser diplomata. Também por esta razão, não posso deixar de ter uma certa simpatia pelas suas preocupações. Mas, sem querer ser paternalista, a sua iniciativa suscita-me algumas interrogações.

Reconheço, sem dificuldade, que a vida não está fácil para as novas gerações – e não só em Portugal. A democratização do ensino leva hoje às universidades uma cada vez maior percentagem de população jovem, sem que isso se traduza na sua automática empregabilidade. A retração no crescimento limita o emprego e as exigências de competitividade conduzem à opção por formas de recrutamento marcadas por elevada precariedade e instabilidade contratual.

Num tempo em que, internacionalmente, se tende a dizer que Portugal deve aceitar um receituário laboral marcado por uma maior flexibilização do mercado de trabalho, a auto-qualificada “geração à rasca” afirma o seu desejo de “direito ao emprego, o fim da precariedade e o reconhecimento das qualificações espelhado em salários e contratos justos”. Temo que estejamos perante um perigoso “wishful thinking”, induzido por algum irrealismo programático. Os tempos da densificação do modelo social em que se apoiava esse tipo de cenário idílico de segurança laboral já lá vão. Com o Estado a limitar o seu próprio crescimento e a caminhar para modelos de contratação menos constrangentes, com as empresas a tentarem garantir ganhos de competitividade para fazerem face à globalização, pergunto-me se será viável - embora fosse, sem dúvida, mais do que desejável - promover garantias ao primeiro emprego como as que são reclamadas.

Há dias, na UTAD, universidade a cujo Conselho Geral presido, pediram-me para fazer uma palestra sobre uma temática ligada a questões estratégicas internacionais. No final, dentre as cerca de duas centenas de auditores, muitas perguntas surgiram, algumas bem longe do tema da minha intervenção, centradas na própria condição laboral futura dos nossos estudantes, no termo dos seus cursos. Devo dizer que fiquei algo angustiado por não conseguir produzir respostas concretas para esses problemas, que reconheço como muito prementes e quase existenciais para esta geração.

O grupo Deolinda fez um tema musical que parece estar a converter-se no hino conjuntural deste movimento. Ele aqui fica registado. 

sexta-feira, março 04, 2011

Os livros e as vidas

Há dias, Pacheco Pereira, num artigo no “Público”, falava de um tema em que partilhamos um interesse em comum: livros. E perguntava-se, já não sei bem porquê, sobre o número de livros que cada um de nós pode vir a ler na vida – número que contrasta com a imensidão de algumas bibliotecas pessoais, impossíveis de serem "consumidas" pelo proprietário (como será, com certeza, o caso da famosa e gigantesca biblioteca do próprio Pacheco Pereira, na Marmeleira).

Esta é uma questão que já coloquei muitas vezes a mim mesmo, tendo chegado a conclusões similares às de Pacheco Pereira.

Há um raciocínio simples: se alguém, entre os 15 e os 75 anos (as idades são flexíveis, mas trata-se de uma média de 60 anos de leitura), tiver lido, com regularidade, dois livros por semana, sabem quantos livros leria no final? 6.240 livros! Pacheco Pereira chegava a uma cifra similar, concluindo, com equilíbrio, que o número máximo real não pode mesmo passar dos cinco mil livros lidos, em toda uma  vida. E, para isso, teria de ser um excelente e regular leitor. Não deixava, porém, de notar que, quando falamos de um “livro”, tanto podemos estar a referir-nos a um pequeno volume de dezenas de páginas como a um calhamaço hermético que se aproxima dos milhares de folhas.

Então, por que diabo, eu, que, em regra, não chego a ler dois livros por semana (quem me dera!) e que ainda tenho mais de uma década antes de atingir a tal idade, possuo já cerca de uma dezena de milhar de livros, na minha biblioteca?

Por razões muito simples e que, sem dificuldade, assumo: porque tenho imensos livros que comprei, na expectativa de vir a ler e que não li (e, dentre eles, muitos que nunca lerei); porque há outros que deixei a meio (por cansaço ou porque outros se tornaram mais urgentes); porque me ofereceram livros que não faziam parte das minhas prioridades de leitura (e que, por isso, não li); porque não consigo arranjar coragem para “desfazer-me” dos livros que tenho; porque, apesar de isso ir contra o mínimo de bom-senso, guardo aquilo a que Jaime Gama chama os “não-livros” (catálogos das coisas mais bizarras, obras de propaganda sobre países, livros turísticos, coletâneas oficiosas de discursos, etc). Também porque tenho muitas obras de referência - enciclopédias, dicionários, prontuários, guias e outras obras para mera consulta, que não justificam leitura completa. E porque sou um masoquista que se dedica compulsivamente à “etnologia” política, desde já previno que também tenho, lá por casa(s), coisas como todos os quatro volumes de “Últimas décadas de Portugal”, de Américo Tomás, o “Livro Verde”, do coronel Muhamar Khadafhi e outras pérolas de qualidade similar, que a injustiça fez escapar ao Nobel.

Os livros e as bibliotecas são, assim, uma perdição que merece toda a minha indulgência.

Deixo-os com uma historieta a propósito de livros. Um dia, um grande amigo meu, leitor compulsivo mas com certa moderação no que adquire e guarda, visitou a imensa biblioteca de uma conhecida figura portuguesa, que, orgulhosamente, lhe mostrava as dezenas de milhares de volumes de que era possuidor. A certo passo desse “tour du propriétaire”, o dono da biblioteca perguntou ao meu amigo: “E você? Tem muitos livros?”. Ele respondeu-lhe, com uma ponta de ironia: “Aí uns seis mil. Não mais. Mas li-os todos…”  

A lingua e as comunidades portuguesas

Em outubro de 2010, participei num seminário em Lisboa sob o tema "Língua Portuguesa e Culturas Losófonas num Universo Globalizado", promovido pela União Latina e pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Na altura, deixei neste blogue apenas o "esqueleto" da minha intervenção, feita de improviso. Alguns comentadores pediram-me o texto, que eu não tinha em forma escrita. Surgiu agora publicado um volume com as contribuições apresentadas nesse encontro, que inclui a que então fiz e que pode agora ser lida também aqui.

quinta-feira, março 03, 2011

Zero

Esta é uma história clássica do MNE.

O novo embaixador chegava a esse posto periférico, vindo do outro lado do mundo, de outra capital de idêntica dimensão. Tratava-se de uma figura que a maioria dos colegas conhecia apenas pelo nome, lido nas burocráticas páginas do "Anuário". Vivendo há muito no estrangeiro, era tido por um solitário, por não ser um homem de lóbis ou de grupos de amigos. Profissionalmente, parecia já acomodado à "slow lane" de um percurso diplomático que até começara bem, mas cuja visibilidade se fora atenuando, com o passar dos anos. Nos tempos que então corriam, parecia apostado em manter-se o mais discreto possível, "desaparecendo" perante Lisboa. Nele se tinha esfumado qualquer vestígio de ambição.

O secretário de embaixada - o único outro diplomata em serviço no posto, como sucede na esmagadora maioria das nossas representações -, que o acolhia, muito poucos dados de personalidade pudera obter sobre o seu novo chefe, apenas lhe tendo chegado que se tratava de uma figura algo peculiar no respetivo comportamento. Assim, a sua curiosidade era imensa. Cabendo-lhe servir, nos anos seguintes, sob a orientação desse embaixador, teria de estar muito atento às suas "manias", cujo controlo era essencial para um bom entendimento futuro.

No caminho do aeroporto para a residência oficial, a conversa foi vaga, sobre o clima e coisas assim. Mas, a certo ponto, as questões de serviço surgiram, perguntando ao secretário:

- E como vai a embaixada em matéria de ofícios e telegramas expedidos ? Tem alguns números do "tráfego"?

(Os "ofícios" são as comunicações escritas, enviadas pela mala diplomática semanal, e, por regra, não têm um caráter urgente. Os "telegramas" são comunicações com um grau de prioridade bastante maior. Têm esse nome porque, no passado, eram expedidas por essa via. Mais tarde, passaram à forma de textos por telex. Atualmente, seguem por e-mail. Em geral, os "telegramas" são expedidos de forma cifrada, por forma a evitar que sejam lidos por quem, eventualmente, intercepte as comunicações).

O secretário hesitou. Havia-se preparado para muitos temas, mas não estava à espera de uma questão quantitativa tão detalhada. Puxou pela memória e lá disse uns números aproximados, na casa de algumas dezenas, em cada caso. Dar-se-ia o caso do embaixador ser um furioso produtor de telegramas? Há colegas que vivem nessa angústia permanente, que inflacionam a produção informativa para terem números superiores aos de outros postos, e que, em especial no final do ano, procuram ridiculamente bater records. Seria ele desses?

Não era. Porque, de imediato, ao embaixador saiu-lhe esta "pérola", que ficou para sempre nos anais da "casa":

- Saiba o meu amigo que o  número ideal, para uma embaixada, seriam "zero" ofícios e "zero" telegramas. Isso significaria que não haveria necessidade de comunicações entre o posto e a "secretaria de Estado" (nome que damos ao MNE em Lisboa), que as relações se passariam sem a nossa intervenção, que nada haveria que reportar e que Lisboa nada precisaria de nós. Esta hipótese, contudo, só existe em tese, porque há sempre fatores a justificarem contactos, através de ofícios e telegramas.  Mas devemos reduzir as comunicações ao mínimo possível.

O embaixador não se terá dado conta que esse seu modelo de funcionamento minimalista, se levado ao extremo, justificaria o próprio encerramento das embaixadas que o praticassem.

Contudo, não conseguir essas "performances" não é sinónimo de o não tentar. Dois anos depois, em meados do ano, o telegrama em que o embaixador anunciava a partida do secretário, colocado noutro posto, iria ter o nº ... 25!

Annie Girardot (1931-2011)

Annie Girardot desapareceu há dias. Teve uma carreira irregular, perdendo-se frequentemente por várias obras menores, nas quais, porém, nunca deixou de refletir a sua grande classe. 

Uma amiga lamentava ontem que eu não tivesse referido a sua saída de cena, talvez porque ela é uma das imagens de memória para uma certa geração francófona e francófica a que ambos pertencemos.

Aqui a recordo, no magnífico "Rocco e i suoi fratelli", de Visconti.

Gente de abril

Uma vez por outra, quando as coisas se propiciam, junto-me a um grupo de antigos oficiais milicianos que, com outros amigos "do quadro", se encontra em torno de um bem disposto e solto almoço.  Foi o que ontem aconteceu.

Une-nos a fidelidade ao 25 de abril - em que quase todos, cada um a seu modo, participámos -, embora os nossos caminhos, por essa época, nem sempre tivessem sido exatamente os mesmos, pelo que alguns nos conhecíamos então menos bem. Os anos foram-nos aproximando, diluindo postos e idades, facilitando o entendimento.
 
Será a nostalgia de um tempo de ilusões perdidas que nos volta a juntar, a memória dessa espécie de adolescência política, que agora revisitamos? 

Não sei, nem sequer sei se tem alguma importância descobrir qual a motivação que nos agrega, muitos na "reserva", outros na reforma e uns quantos, por algum tempo mais, no ativo. Apenas fica bem claro, para todos nós, que apreciamos a mútua companhia e que, com cambiantes não necessariamente homogéneas na leitura do presente e do caminho que até aqui nos conduziu, nos continuamos a rever nessa magnífica aventura de 1974.

quarta-feira, março 02, 2011

O meu "spread"

Ao notar, por estes dias, o gozo alarve de alguns blogueiros e afins, que se deliciam com qualquer sinal que indicie a necessidade de Portugal vir a ter de recorrer a ajuda externa, sem cuidar minimamente das profundas consequências negativas que decorreriam para o nosso país de um tal cenário, apenas degustando, por antecipação e com total irresponsabilidade, as decorrências políticas que pudessem satisfazer os seus ódios mesquinhos de estimação, sou levado a constatar que, entre mim e essa gente, existe, na bolsa de valores nacionais, (e para usar, em sentido figurado, um termo que excita esses figurões) um imenso e insanável "spread".

terça-feira, março 01, 2011

A carta da Líbia

Naquela segunda metade da década de 70, as relações entre Portugal e os países árabes iam de vento em popa. Não tardariam, contudo, a ser afetadas (apenas um pouco), por virtude da decisão política de Lisboa de vir a estabelecer relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel (embora a nossa representação em Telavive acabasse por só ser aberta em ... 1991!).

Como jovem diplomata, eu era então secretário de um grupo de trabalho com nome pomposo - CICEPMOM (Comissão Interministerial para a Cooperação Económica com os Países do Médio Oriente e do Magrebe) -, criado pelo ministro Melo Antunes, presidido pelo engenheiro Torres Campos e integrado por uma dezena de pessoas, entre as quais o também engenheiro António Guterres. Os mercados árabes, diluídas que estavam as anteriores reticências políticas face a Portugal, no pós 25 de abril, mostravam-se um terreno promissor de negócios, em especial para o setor de construção civil e obras públicas.

A Líbia era um desses novos horizontes de trabalho económico externo, como  já referi aqui. Um dia, algures no segundo semestre de 1978, na velha "EAA" (repartição da África e Ásia da DG dos Negócios Económicos), fui chamado ao telefone ("ó doutor, é um inglês para si!", berrou, lá de dentro, uma das senhoras do "apoio"). Quem me falava, do aeroporto de Lisboa, era um diretor-geral do ministério dos Municípios líbio, que eu havia conhecido, meses antes, em Tripoli. Informou-me que era portador de uma carta do titular daquele ministério para o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, José Medeiros Ferreira: tinha instruções para fazer entrega pessoal da missiva. Ambos se tinham conhecido numa visita a Lisboa e o ministro português havia sido fundamental para o reforço das relações económicas bilaterais entre os dois países.

Contactado o gabinete do ministro, fiquei a saber que este tinha partido, na véspera, para Nova Iorque, a fim de assistir à Assembleia Geral das Nações Unidas. E que - curiosamente! - iria encontrar-se naquela cidade, no dia seguinte, com o MNE líbio. Nestas condições, que significado poderia ter uma carta, enviada por intermédio de um correio personalizado, subscrita por outro ministro líbio - aquele por quem passavam os principais contratos que estávamos prestes a assinar com as autoridades do país? Era urgente clarificar isto.

O chefe (interino) do gabinete do MNE, Carlos Neves Ferreira, cedeu-me um carro para eu ir buscar o diretor-geral líbio ao aeroporto. Trouxe-o às Necessidades, fomos explicando que o nosso ministro estava em Nova Iorque mas prometemos que lhe daríamos conta, de imediato, da mensagem do ministro dos Municípios líbio. Entregou então a carta, em envelope fechado. Acompanhei-o de volta ao aeroporto, de onde partiu para Madrid. Dei o assunto por encerrado, no que me respeitava.

Puro engano. Retornado às Necessidades, sou, de novo, chamado ao gabinete do ministro, onde me foi exposta uma dificuldade, que eu tinha de encontrar maneira de superar: a carta estava escrita em árabe! Era necessário traduzi-la. Eu que me desenvencilhasse, como pudesse.

Com a "criança nos braços", com Nova Iorque à espera de novidades, não sabia bem como proceder. Não conhecia nenhum falante de árabe, em quem pudesse ter confiança, em Lisboa! Tinha alguns amigos em embaixadas de países árabes em Portugal, mas a Líbia era já, à época, um país fora do "mainstream" político do mundo árabe, pelo que não podia correr o risco de colocar em mãos adversas uma informação que, pela urgência e pela forma como nos fora transmitida, teria de ter, seguramente, alguma importância e delicadeza.

Foi então que me lembrei que, nos meus tempos de universidade, havia conhecido um especialista em língua e cultura árabe, o professor Dias Farinha. Descobri-o pela lista telefónica e fui visitá-lo a casa, numa das torres do Restelo. Expliquei-lhe o nosso embaraço e o pedido de urgente ajuda que lhe formulávamos. A resposta foi menos direta do que eu pensava: a especialidade do nosso professor era o árabe clássico, pelo que precisava de algumas horas para, com apoio de dicionários, "trabalhar" o texto.

Ao final dessa tarde, regressei. E foi então que constatei, pela tradução feita, que a carta era, nem mais nem menos, um montão de banalidades e lugares-comuns, de formulação de votos pelo prosseguimento das boas relações que eram mantidas entre os setores técnicos nas áreas onde Portugal se preparava para atuar na Líbia, da grande importância que Tripoli atribuía a um entendimento cada vez mais profundo com o nosso país, etc, etc. Tudo "langue de bois".

Eu estava siderado, e preocupado. Inquiri do professor Dias Farinha se, de facto, ele estava bem seguro de que a carta não era mais do que "aquilo", se não havia alguma mensagem subliminar ou se, afinal, eu podia assegurar ao meu ministro que o texto era, como se constatava, mera "conversa fiada". O especialista garantiu-me que sim.

Lá regressei às Necessidades, informou-se a nossa missão na ONU e o ministro português deve ter concluído, shakespeareanamente, sobre o alarme dos seus colaboradores em Lisboa: "much ado about nothing".

A historieta não acaba aqui. Em 2001, quando fui representar Portugal na ONU, ao cumprimentar o meu colega líbio, julguei nele reconhecer uma cara familiar: era o antigo ministro líbio dos Municípios, de seu nome Abuzaid Dorda. Nada mais nada menos que o subscritor da carta que tanto trabalho me havia dado. Tornámo-nos bons amigos. Nestes dias, tenho-me perguntado: que será feito dele?

Em tempo: infelizmente, as notícias que dele me chegam não são as melhores, como se pode ver aqui.

"Ilhados"

Passageiros "ilhados", segundo a imprensa brasileira.

A língua portuguesa deve muito à criatividade do Brasil.

Fora da História

Seria melhor um governo constituído por alguns nomes que foram aventados nos últimos dias mas que, afinal, acabaram por não integrar as esco...