domingo, maio 03, 2009

Fitas

É o retrato lamentável de um certo Portugal contemporâneo o espectáculo anual que nos é dado pela Queima das Fitas, começando em Coimbra mas espalhando-se um pouco por todo o país, que enche os serviços de urgência dos hospitais com estudantes a cair de bêbados. Os serviços públicos de saúde têm mais que fazer do que estar a gastar recursos com quem, pelos vistos, reserva para o álcool o dinheiro que diz não ter para pagar propinas. E é especialmente cínica a "cooperação" das empresas cervejeiras no evento, disfarçando a sua cumplicidade com anúncios rebuscadamente "soft", onde a lei do politicamente correcto as leva a inserir envergonhados apelos à moderação nos consumos.

Significativo não deixa de ser o facto de, à parte alguns comentários de circunstância, tidos à conta de uma leitura retrógrada da vida, ninguém parecer preocupar-se muito com isto, desde os pais às autoridades académicas, como se fosse já inelutável este estado de coisas - e, naturalmente, como se combatê-lo pudesse representar um inqualificável atentado aos sagrados "direitos dos estudantes".

sábado, maio 02, 2009

Blogue

Há três meses, dia por dia, foi iniciado este blogue. O objectivo pretendido, definido no primeiro "post", foi globalmente conseguido, embora confesse que gostaria que a percentagem dos visitantes oriundos de França fosse ligeiramente maior.

Como se poderá verificar, clicando o "sitemeter", à direita da página, houve diariamente cerca de 250 pessoas a consultar o blogue, o que faz com que, desde 2 de Fevereiro, mais de 20 mil consultas individualizadas tivessem sido feitas, se bem que as consultas a páginas, em grande parte através dos motores de busca da internet, ultrapassassem 50 mil. Atendendo às características dos textos do blogue, nomeadamente à diversidade dos seus "posts" - cerca de 200, desde o início -, considero surpreendente o nível de leitura média diária atingida. Uma palavra particular de apreço aos 62 leitores habituais que, até à data, se increveram no blogue.

E, por hoje, na ressaca do Dia do Trabalhador, em que poderíamos ter desfilado como na imagem, o blogue fica-se por aqui.

sexta-feira, maio 01, 2009

Cleonice

Foi uma hora e quarenta minutos de exposição. Mas, para as dezenas de pessoas presentes, ao final da tarde de ontem, na Fundação Gulbenkian, em Paris, pareceram escassos os minutos que demorou a palestra da Professora Cleonice Berardinelli, apresentando a sua visão sobre Camões, nas suas dimensões lírica e épica.

Num francês magnífico, servido por uma dicção soberba, por uma memória privilegiada, do alto dos seus inacreditáveis quase 93 anos, a decana dos estudos de língua e cultura portuguesa no Brasil - e, provavelmente, em todo o mundo - revisitou a poesia camoneana, com arte e profundidade, numa viagem interessantíssima, da qual a generalidade dos presentes terá saído com vontade de reler rapidamente Camões.

É muito graças ao esforço e dedicação destes lusófilos que as grandes figuras da história da cultura portuguesa permanecem na agenda académica, por esse mundo fora.

quinta-feira, abril 30, 2009

1º de Maio de 1974


Imagem de Portugal

Durante o debate que se seguiu a uma palestra que proferi ontem na Cidade Universitária de Paris, e cuja tradução se pode ler aqui, uma estudante perguntava-me sobre o modo como Portugal era, nos dias de hoje, visto do exterior, passados que foram 35 anos desde o 25 de Abril.

É sempre muito complexo tentar sintetizar, em poucas e sempre subjectivas palavras, um olhar que é, por definição, plural e não unívoco. Mas é meu entendimento que a imagem internacional de Portugal sofreu bastante durante o período do Estado Novo, em especial quando se opôs ao movimento descolonizador, ao mesmo tempo que teimava na manutenção de um regime cerceador das liberdades. Além disso, um país que obriga à emigração dos seus cidadãos é um país que não se prestigia: por regra, cada um deve poder encontrar, na terra que o viu nascer, a forma de sustentação e de desenvolvimento da sua vida. A emigração pode ser uma opção, não deve ser nunca um destino. E, em Portugal, foi-o por quase dos séculos. E a nossa imagem colectiva não deixou de sofrer com isso.

Com a recuperação da democracia, em 1974, uma onda de boa-vontade espalhou-se sobre Portugal, recebido de braços abertos pela comunidade internacional, em especial nos organismos multilaterais, com os quais o novo regime procurou, desde o primeiro momento, trabalhar de forma altamente colaborante. Portugal conseguiu então captar a simpatia de muitos países e sectores de que estivera alheado. E, sem dúvida, a imagem internacional do país reforçou-se muito com a institucionalização democrática, com a integração europeia, com a adesão a objectivos respeitáveis na ordem externa - de que o caso da autodeterminação timorense é talvez o melhor exemplo.

Ao longo dos últimos 35 anos, a diplomacia portuguesa soube projectar a imagem de um país com uma grande capacidade de diálogo, empenhado nas grandes causas da modernidade e da ética internacionais, com posições quase sempre de grande equilíbrio e sentido de compromisso, com uma leitura serena das grandes questões mundiais - enfim, uma "diplomacia previsível", que creio ser uma das grandes armas para afirmar a credibilidade de qualquer Estado moderno. A política externa do Portugal democrático - independentemente dos governos, apenas com pontuais rupturas do consenso - constitui hoje um dos pilares mais sólidos da imagem do país, para a qual também contribui, no mesmo âmbito, o empenhamento das nossas Forças Armadas em importantes cenários de preservação da paz.

Porém, na minha resposta à estudante não disse algo que acho importante referir. Falta ainda a Portugal atingir um patamar que é condição essencial para uma imagem internacional completamente sólida: um amplo bem-estar colectivo. Lá chegaremos um dia!

Descolonização

Texto de um "take" da Agência Lusa de hoje: O embaixador de Portugal em Paris, Francisco Seixas da Costa, opinou quarta-feira, em Paris, que no seu "ponto de vista pessoal", a descolonização "foi uma tragédia, tal como foi a colonização, mas não era possível fazer de outra maneira."

A expressão, em rigor, foi esta: "A descolonização foi uma trágédia, da mesma maneira que a colonização foi uma tragédia. Esta é uma frase de Melo Antunes que eu subscrevo". Mais adiante referi: "A descolonização foi feita da forma que foi porque o estado a que o regime anterior tinha conduzido a situação nas colónias não possibilitou outra solução", tendo também referido que uma solução negociada teria sido possível, se para tal houvesse vontade política, nos anos 50, e tendo ainda detalhado as muito difíceis condições político-militares nas colónias com que o novo poder se viu confrontado e que impediam que se seguissem outras vias.

As sínteses têm sempre riscos, o principal dos quais é a imprecisão.

quarta-feira, abril 29, 2009

O Quarto

Era o tempo das negociações para a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, essa primeira década dos anos 80 em que, com muito esforço e dedicação, vários sectores da sociedade portuguesa foram chamados a dar o seu testemunho sobre as práticas em vigor no nosso país, a fim de as procurar tornar compatíveis com as que eram seguidas nessa Europa a que pretendíamos aderir.

A vida europeia tem regras, padrões e medidas que, parecendo bizarrias a muitos, têm como objectivo garantir uma presença no mercado comum comunitário dos produtos originários dos vários países, em moldes susceptíveis de garantirem uma livre e equilibrada concorrência.

Nesse dia, eram os nossos produtores de leite que explicavam qual o tipo de vasilhame que era usado em Portugal. O técnico que tinha ido a Bruxelas falava um francês razoável, porém com algumas falhas que, não sendo trágicas, eram, pelo menos, cómicas. Uma delas teve graça. Ao referir-se ao tipos de garrafas utilizadas em Portugal para a venda de leite, terá dito mais ou menos isto: "Au Portugal, nous avons des bouteilles de litre, de demi-litre et de chambre de litre".

O espanto dos auditores de língua francesa terá sido muito, ao serem confrontados com esta criativa forma de se referir ao quarto de litro...

terça-feira, abril 28, 2009

Jornalistas

Jean Lacouture é das grandes personalidades do jornalismo francês, com uma carreira brilhante que passa pelo histórico Combat, pelo Le Monde e pelo France Soir, antes de se afirmar como um dos mais notáveis colunistas do Nouvel Observateur. Apaixonado pelas lutas anti-coloniais, foi um feroz anti-gaullista, antes de se converter num admirador do General. A sua obra no campo da biografia é imensa e variada, sempre servida por uma escrita ágil e rica.

Ao 88 anos, acaba de publicar uma excelente memória biográfica de 14 grandes jornalistas franceses. A escolha é porventura polémica, por alguns que lá estão - Mauriac, Pivot - e por alguns que não estão - como Camus, Fauvet, JJ Servan-Schreiber ou mesmo Aron. Uns por umas razões, outros por outras. Não deixa, contudo, de ser um livro fascinante, uma verdadeira pequena história do jornalismo francês.

O título do livro é, em si mesmo, uma definição magnífica dos jornalistas: os impacientes da História. E bem verdadeiro, para alguns.

Leixões


O site da TSF titula: Leixões empatam com Guimarães.

A isto se chama pluralismo desportivo.

segunda-feira, abril 27, 2009

Racismo

As conclusões da Conferência da ONU sobre o Racismo, que teve lugar em Genève, deram plena razão à posição do Governo português que, desde muito cedo, entendeu, no seio da União Europeia, que era importante distinguir entre o essencial e o acessório, evitando que este último pudesse colocar em causa o esforço, longo e meritório, que a comunidade internacional tem vindo a fazer desde a reunião de Durban I.

O nosso país sempre afirmou que não deixaria de estar presente na Conferência, desde que o documento final mantivesse um padrão globalmente positivo, como veio a acontecer. Não foi esse, infelizmente, o entendimento de um escasso número de parceiros europeus, o que, não sendo dramático, configurou uma dissonância numa dimensão importante da acção externa europeia.

Nestas como em outras temáticas centrais da cena multilateral, importa sempre estar presente e actuante, trabalhar bem a montante das reuniões finais e não deixar que elas venham a ficar reféns fáceis de gestos mediáticos e espectaculares que, lançando uma imagem de conflitualidade e polémica, não reflectem a qualidade do trabalho efectivamente realizado. E não devem pô-lo em causa.

O documento final da Conferência sobre o Racismo, segundo todos os especialistas, configura uma salto qualitativo muito significativo na matéria, desenha um conjunto objectivo de compromissos e prolonga a responsabilidade internacional num processo de execução de medidas fundamentais na luta contra o racismo, xenofobia e todas as formas de discriminação e intolerância.

Agora, o esforço principal deverá ser tentar reconduzir a nova Administração americana, que se sabe ter uma particular sensibilidade perante esta temática mas encontrou o processo negocial num estádio já muito avançado, a trabalhar de forma conjugada com os principais actores que podem levar a bom porto as medidas que agora foram acordadas. Nestas como em outras questões de natureza global, a experiência prova que faz toda a diferença ter os Estados Unidos no grupo impulsionador.

domingo, abril 26, 2009

Bartolomeu

Este 25 de Abril já não teve o Bartolomeu, o Bartolomeu Cid dos Santos.

Para ele, para quem a data era talvez a sua mais importante estação da vida, aqui fica a memória de uma sua gravura.

Poemas de Abril

O magnífico Tim Tim no Tibet traz-nos uma bela memória poética do 25 de Abril.

Para além de uma homenagem a Melo Antunes. Coronel, claro.

sábado, abril 25, 2009

O herói


Quando abrimos a porta, o Ramos dormitava numa sala de instrução, cabeça sobre a mesa, barba por fazer. Horas antes, tinha sido detido. Ele era o oficial de dia e, não estando no segredo do golpe, sendo imprevisível a sua reacção e não havendo tempo para operações de recrutamento por convicção, foi essa a decisão que os responsáveis pela tomada da unidade militar assumiram como a melhor, até para sua própria defesa, se algo corresse mal.

O Ramos era um tenente miliciano que decidira integrar a carreira profissional, uma facilidade a que o corpo militar recorria com cada vez mais frequência. Era um homem jovial, um pouco “militarão”, mas boa pessoa, com excelente relação com todos nós. Nada indicava que pudesse ser hostil à nova situação. Ora as coisas começavam a serenar, a unidade estava sob total controlo, Marcello Caetano estava cercado no Carmo, não havia razão para lhe prolongar o sofrimento. Foi solto.

De início ficou um pouco confuso, mas foi-lhe explicado o que acontecera, as razões da sua detenção e que, naturalmente, se contava com ele, dali em diante. Ficou outro. Foi tomar um banho e juntou-se-nos, com uma alegria genuína.

Perdi-o de vista durante o dia mas, ao final da tarde, venho a encontrá-lo na RTP, objectivo estratégico que a nossa unidade ocupara nessa noite. Tinha sido, entretanto, encarregado da segurança da entrada dos estúdios de televisão, com um grupo de soldados cadetes.

Quando se aproximou a hora da chegada à RTP da Junta de Salvação Nacional, para fazer a sua proclamação ao país, o Ramos montou aquela que viria a ser a guarda de honra para a chegada de Spínola, Costa Gomes e os outros membros do novo poder. Por curiosidade, confesso, para poder estar presente nessa ocasião com laivos de histórica, juntei-me a ele na entrada da RTP, onde, à época, havia uma bomba de gasolina. Como eu era aspirante e ele tenente, fiquei sob o seu episódico comando, para o exercício de protocolo militar que se iria seguir.

O grupo de cinco ou seis soldados cadetes que compunham a “tropa” do Ramos, que passei a “subcomandar”, estava num estado de cansaço que não augurava uma grande dignidade ao momento que se iria seguir. Bom conhecedor da poda militar, o Ramos relembrou a todos a forma de proceder na cerimónia de apresentação de armas.

Todos os soldados tinham G-3. Eu, porém, ainda hoje estou para saber porquê, tinha andado todo o dia com uma metralhadora FBP (na qual eu tinha “forçado”, por lapso, um carregador de balas errado, creio que de uma Vigneron, o que, mesmo que fosse preciso, me teria impedido de dar um único tiro durante todo o 25 de Abril...), arma que exigia um gestual protocolar diferente. Mas que lá aprendi, graças ao Ramos.

Chegado o grande momento, o Ramos afina a guarda de honra à Junta. Do primeiro carro, que me recordo de ser acinzentado, saiu Spínola, grave como sempre. O Ramos, com garbo, deu as vozes de comando necessárias e lá fizémos a melhor “apresentação de armas” que nos foi possível organizar.

Spínola perfilou-se face ao Ramos, fez continência, fixou o monóculo e olhou-o, por um imenso instante. O resto dos membros da Junta pararam, um pouco atrás, expectantes do momento. Spínola lançou então, para o perfiladíssimo Ramos, sempre em continência:

- "Eu não o conheço da Guiné, nosso tenente?".

O Ramos só conseguiu balbuciar, esmagado de comoção:

- "Meu general, efectivamente tive a honra de servir com V. Exa. na Guiné".

Spínola grunhiu algo, do tipo "logo vi!", e afastou-se, de capote e pingalim, rampa acima, a caminho dos estúdios.

Aí, o Ramos virou-se para mim, impante:

- "Estás a ver, pá, ele reconheceu-me, lembra-se de mim. Este gajo sempre foi o meu herói!".

E continuou a sê-lo, a partir daí. Para o Ramos.

A Festa

É diferente o 25 de Abril em França.

Os portugueses comemoraram, um pouco por toda a França a Revolução de Abril, em algumas dezenas de festas populares, que se iniciaram ontem e cujos eventos se prolongam, nalguns casos, por toda a próxima semana. Alguns não deixam de lembrar a ditadura, a censura, os presos políticos, a PIDE e o obscurantismo anti-democrático, bem como os capitães de Abril que ajudaram a pôr um ponto final a tudo isso e às três guerras coloniais. Eu próprio o fiz, ontem à noite, em Fontenay-sous-Bois, numa magnífica jornada de alegria e cravos, com muita juventude, mobilizada pelo entusiasmo democrático de Baptista de Matos, após um desfile à luz de archotes que terminou naquilo que é o único monumento ao 25 de Abril erigido no estrangeiro.

Mas, repito, há algo de diferente no 25 de Abril em França.

Por aqui, para além da Revolução, comemora-se a recuperação da cidadania dos portugueses que a ditadura obrigou a sair de Portugal. Celebra-se o início de um caminho para a atribuição do estatuto pleno de que hoje beneficiam na sociedade francesa, graças à sua pertinácia, à sua força, à sua capacidade de afirmação, eles que entraram para as Comunidades Europeias bem antes de Portugal a elas ter aderido formalmente. Celebram a sua liberdade. Um jantar-encontro na noite de hoje, organizado em Ivry-sur-Seine por essa figura indomável da cultura portuguesa em França que é João Heitor, recheado de músicas de Abril e de boa disposição, com a presença honrosa do antigo embaixador português, Coimbra Martins, provou-me que a festa é, por aqui, o outro nome do 25 de Abril.

Histórias do 25 de Abril - O comandante

As ordens tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma autorização, dada caso a caso. A surpresa foi, assim, muito grande quando vimos o comandante da unidade, em passo lento mas firme, arrastando o corpo pesado, a subir a ladeira que levava à parada onde nos encontrávamos. O sargento de guarda ao portão ter-se-á amedrontado com a aparição da sua figura e, perante um berro hierárquico, lá o teria deixado entrar.

Ao ver surgir o comandante, o capitão do quadro que assumira as funções de oficial de dia, desde as primeiras horas do golpe, ficou lívido.

- “Ora bolas! E agora, que fazemos?”, voltando-se para o António e para mim, que o acompanhávamos na parada.

Não deixava de ter a sua graça: nós, meros aspirantes a oficial miliciano, a aconselhar um profissional que era o responsável máximo de uma unidade militar amotinada.

Entretanto, o comandante ia-se aproximando, tínhamos poucos segundos para reagir.

- “Prenda-o de imediato, mal ele chegar ao pé de nós”, disse-lhe eu, em tom baixo, delegando comodamente a minha coragem.

Ainda era muito cedo, nesse dia 25 de Abril, não fazíamos a mais leve ideia de como estava a situação pelo país, não sabíamos mesmo se não seríamos das poucas unidades amotinadas.

- “Você está doido, então eu ia lá prender o homem!”. Pela disposição do capitão, eu e o António percebemos que as coisas não iam ser nada fáceis.

O comandante aproximou-se de nós e estacou, aí a dois metros. Trocámos as continências da praxe, com o António, dado que tinha a boina displicentemente no ombro, a fazer um mero aceno com a cabeça.

- “O que é que você está aí a fazer de oficial de dia?”, lançou o comandante, em voz bem alta, ao vê-lo com a braçadeira encarnada da função. “Não era o Ramos que estava de serviço? E o que é que andam os cadetes a fazer pela parada? Porque é que a instrução ainda não começou?”.

Eram aí oito e meia da manhã e, desde as oito, os soldados cadetes deveriam, em condições normais, estar a ter aulas. O capitão, sempre ladeado por nós os dois, estava, manifestamente, sem saber o que fazer, com o quarteto já sob os olhares gerais.

- “Ó meu comandante, é que houve uma revolução…”, titubeou o capitão, em tom baixo, como que a desculpar-se. Não explicou que o oficial de dia, que ele substituíra, havia sido detido nessa madrugada e estava fechado numa sala.

O comandante, sempre ignorando-nos olimpicamente, olhou o capitão nos olhos e atirou-lhe, com voz forte e bem audível à volta:

- “Qual revolução, qual carapuça! Você está-se é a meter numa alhada que ainda lhe vai arruinar a carreira! Ouça bem o que lhe digo!”.

O momento começava a ser de impasse. O comandante olhava já em redor, num ar de desafio, consciente de que recuperara algum terreno, mas também sem soluções óbvias para retomar a autoridade. Não havia mais militares do quadro à vista, alguns tinham ido para a missão externa que a unidade tivera a seu cargo, outros ter-se-ão prudentemente esgueirado, para evitar a incomodidade deste confronto com o comando legal. O capitão quase que empalidecia de crescente angústia.

É então que o António, com o ar blasé de quem já estava a perder paciência, lança um providencial:

- “Ó meu capitão, vamos lá acabar com isto!”.

O comandante olhou então finalmente para o António e para mim, dois mero aspirantes, com uma fácies de extremo desprezo, como se só então tivesse acordado para a nossa presença em cena.

Aproveitei a boleia da indisciplina, aberta pelo António, e fiz das tripas coração:

- “Ó meu coronel, e se fôssemos andando para o seu gabinete?”.

O coronel olhou-me, com uma raiva incontida:

- “Coronel? Então já não sou comandante?”.

A crescente nervoseira deu-me um rasgo, com uma ponta de sádica ironia:

- “Não, não é, ainda não percebeu? E a conversa já vai muito longa, não acha, meu capitão?”.

Mas o capitão continuava abúlico. O impasse ameaçava prosseguir.

- “Então você deixa-se comandar por dois aspirantes?!”, lançou o coronel, numa desesperada tentativa de puxar pelo orgulho do pobre oficial.

Mas o vento já tinha claramente mudado e achei que tinha de aproveitar a minha inesperada onda de coragem, até porque, no fundo, já pouco tinha a perder:

- “O meu coronel quer fazer o favor de nos acompanhar até ao seu gabinete? É que, se não for a bem, tem que ir a mal e era muito mais simpático que tudo isto se passasse sem chatices”.

Confesso que me espantei com a minha própria firmeza mas, pronto, o que disse estava dito. O capitão não reagiu, para meu sossego. O coronel entendeu então, talvez pela primeira vez, a irreversibilidade da situação. A sua voz baixou para um limiar de resignada humilhação:

- “Então eu estou preso, é isso?”, disse, num tom muito menos arrogante.

- “Mais ou menos. Vamos andando, então”, cortei, rápido, dando o capitão por adquirido, mas sem fazer a mais pequena ideia se ele queria ou não prender o coronel.

Nesse segundo, dei-me conta que, se tudo acabasse por correr mal, o meu futuro iria ser complicado.

E lá fomos para o gabinete do comando. Duas horas depois, mandámos um carro levar o coronel de volta a casa.

Só o voltei a ver, anos mais tarde, ao entrar no Café Nicola. Recordo o olhar gélido que me lançou, com porte ainda altivo, barriga saliente, muito na reserva. Já com toda a liberdade, pedi uma bica.

Canções de Abril (3)

... e foi assim, com a "Grândola, Vila Morena", que o Portugal democrático renasceu em 25 de Abril de 1974.

Ouça a canção aqui.

Histórias do 25 de Abril - O Telefone


Estava-se nas primeiras horas do dia 25 de Abril de 1974. Todo o pessoal que dormia no quartel tinha sido acordado e mandado formar no escuro da parada. De megafone na mão, o capitão que liderava a revolta, anunciou que a unidade ia integrar um movimento militar que tinha como finalidade “acabar com a ditadura”, competindo-lhe atacar um determinado objectivo.


Os soldados, quase todos ensonados, alguns ainda a despistar a hipótese de se tratar de um mero exercício, ouviram em silêncio as palavras do capitão: quem quisesse alinhar que fosse buscar a sua arma, os restantes podiam voltar para a cama.


Mas já ninguém conseguiria dormir. Ouviram-se alguns comentários e apartes mais entusiastas, de milicianos com tarimba das lutas do associativismo universitário, alguns dos quais já previamente contactados, para o que viria a ser uma das primeiras operações militares que o Movimento das Forças Armadas iria efectuar nessa madrugada.


O pessoal foi mandado destroçar e, em pequenos grupos, regressou, cochichando, às camaratas, em busca da arma ou do travesseiro para a vigília.


Foi então que um soldado, discretamente, se aproximou da cabina telefónica que existia num canto da parada. Abriu a porta e, nessa altura, alguém, mais atento, atirou-lhe um berro:


- "Eh! pá, o que é que vais fazer?".


O rapaz olhou, meio apalermado, largou a porta da cabina já entreaberta e disse, com toda a candura, que só queria avisar a família, não fossem ficar em cuidados quando ouvissem as notícias.


- “Nem as penses! Pira-te daí!”, ouviu logo.


Desapareceu de imediato, rumo à camarata. Alguém entrou na cabina e arrancou o fio do telefone.


Como se faria hoje uma revolução, na era dos telemóveis?


sexta-feira, abril 24, 2009

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
onde emergimos da noite e do silêncio
e livres habitamos a substância do tempo

Sofia de Mello Breyner

Canções de Abril (2)

Hoje à noite, precisamente há 35 anos, uma canção funcionou como a primeira senha para os militares que, por todo o país, se preparavam para lançar aquela que viria a ser a Revolução de 25 de Abril.

Foi João Paulo Dinis, uma voz agora histórica da rádio, que a Comunidade portuguesa em Paris pôde ouvir durante algum tempo na Rádio Alfa, quem sugeriu e colocou "no ar" o som de Paulo de Carvalho, cantando "E depois do adeus", a canção que, pouco tempo antes, havia sido escolhida para representar Portugal no festival da Eurovisão.

Ouça-a aqui.

Politicamente correcto (2)

Agora foi a vez de Coco Chanel (na foto).

Um filme sobre a sua vida, que dizem ser excelente, teve a sua publicidade impedida no metro de Paris pelo facto da actriz que a representa aparecer a fumar.

Tenho cá para mim que, um destes dias, vamos acabar por ter "westerns" sem Colt 45, numa qualquer campanha contra as armas.

Fora da História

Seria melhor um governo constituído por alguns nomes que foram aventados nos últimos dias mas que, afinal, acabaram por não integrar as esco...