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domingo, setembro 02, 2018

O carro do Guerra



Não sei há quantos anos morreu o Guerra Liberal. Era assim mesmo o nome desse amigo, um pouco mais velho do que todos nós, mas que nos acompanhava, com uma camaradagem excecional, nas noites e madrugadas de Vila Real, nos verões dos anos 60. Era uma figura encantadora, disponível, amigo-do-seu-amigo, como então se dizia.

O Guerra, como o chamávamos, era proprietário de um carro grande, velhíssimo, um Vauxhall preto, de quatro portas, que vulgarmente estava estacionado em frente ao Hotel Tocaio, a dois passos da Pastelaria Gomes. O carro estava sempre aberto e, recordo-me, em épocas de enchente na esplanada da Gomes, convertia-se numa espécie de “sala de estar” dos amigos do Guerra, mesmo sem ele. Grandes conversas lá tive! 

Há duas aventuras (só conto duas, porque outras houve!) passadas com o carro do Guerra - porque o carro andava! - que nunca mais esquecerei. O primeira foi algo perigosa, a segunda foi divertidíssima.

Uma noite, houve uma ideia maluca, logo complementada por uma aposta. Tratava-se de conduzir o carro do Guerra até ao fundo da reta de Mateus, no alto do Bairro dos Prazeres, desligá-lo e deixá-lo deslizar por ali abaixo, praticamente sem “tocar no travão”, tentando que ele chegasse tão longe quanto possível, nesse trajeto, quase sempre a descer, do antigo “circuito”. Íamos quatro lá dentro, com o Guerra a conduzir. A operação era muito arriscada, porque se utilizava toda a estrada, na esperança (felizmente concretizada!) de que não surgisse ninguém em sentido contrário. Largado o carro, passada “na mecha” a curva da Araucária, em direção à garagem do Antoninho do Talho, junto à casa do Granjo, o Vauxhall preto fazia uma perigosa tangente na casa do chefe da Estação, entrava, “com o balanço”, na pequena reta do colégio, descia para a ponte metálica e ia morrer algures no seu termo. A grande questão é se chegava à tasca da Cardoa ou não. Eu apostei que sim... e perdi cinco paus! Inconsciências! 

Da segunda aventura, fui apenas observador, colocado com outros, discretamente à distância, na esquina do Patinhas. O Guerra tinha conseguido negociar com uns ciganos, a troco já não sei de quanto, a cedência de um pequeno burro. Já bem de madrugada, pelas quatro ou cinco da manhã, meteu-se o burro no carro, com a cabeça de fora, do lado do condutor. A operação foi concluída em frente ao Tocaio. Dentro do carro, deitado, com uma mão no volante e um pé no travão, ia um voluntário. O carro foi empurrado, fez uma curva para a direita na esquina no hotel e passou, bastante devagar, em frente à Polícia e à garagem S. Cristóvão. À porta da PSP, numa guarita que por ali havia, estava um cívico de capacete, que deve ter pensado ser uma “miragem” ver deslizar, sem ruído de motor, um carro “conduzido” por um burro... O homem ter-se-á assustado e entrou para dentro da esquadra (nós cocávamos, de longe), enquanto o carro deslizava pela estrada abaixo, desaparecendo no caminho em direção à ponte do Cabril. Passado aí um quarto de hora, o Austin, desta vez bem a trabalhar, subiu o caminho inverso, conduzido pelo Guerra (que entretanto tinha ido pela Marechal Teixeira Rebelo ter com o carro às Florinhas da Neve, onde o cigano recebeu o burro de volta). Na esquina da PSP, estava o guarda e um colega. Mandaram parar a viatura. O primeiro guarda inquiriu: “Este carro não passou há bocadinho aqui, com um burro?” O Guerra fez-se de ofendido: “Ó senhor guarda! Desculpe lá! Eu não lhe admito que me chame burro! Eu passei para baixo, há pouco, em ponto morto, mas não sou nenhum burro!”. Criou-se uma perplexidade entre os polícias, com o primeiro, desesperado, a teimar: “Mas eu vi um burro neste carro! Lá isso é que vi!”. O Guerra insistia, dizia que, se continuasse a ser insultado, iria falar com o comandante no dia seguinte e coisas assim. E, com a cumplicidade implícita do segundo guarda, que já não “comprava” a história do seu colega, lá conseguiu seguir. Disse-nos, depois, que foi logo tomar banho: o carro ficou a cheirar a burro por semanas...

(Quem não é de Vila Real daquele tempo terá de desculpar o peso toponímico do texto)

sexta-feira, agosto 31, 2018

Tocaio

A “Sábado” traz ontem um artigo sobre o antigo Hotel Tocaio, em Vila Real, assinado por Maria Espírito Santo. 

Como o texto bem destaca, o Tocaio foi, por muitos anos, o centro cosmopolita de uma cidade onde só raramente aportavam figuras de destaque, as quais, naturalmente, era por ali que se alojavam. O artigo traz, nesse particular, algumas histórias curiosas. A cidade fazia alguma “cerimónia” com o Tocaio, com exceção, a partir de certa altura, do bar do hotel, que passou a ser frequentado como espaço social mais aberto.

O Tocaio, contudo, havia deixado de funcionar já há décadas, mantendo-se como uma triste ruina, no centro da mais emblemática avenida da cidade. Vai agora ser transformado numa clínica privada, mantendo a traça da sua última versão arquitetónica. Do mal o menos! Numa metáfora que se liga à sua futura utilização, pode dizer-se que é sempre preferível uma “cicatriz”, mais ou menos bonita, à “ferida” que Vila Real ali teve aberta por muitos anos. E ganha-se um equipamento de saúde, o que não é despiciendo.

Sou testemunha pessoal de que, desde o início do seu mandato, o atual presidente da Câmara, Rui Santos, se empenhou fortemente na procura de uma solução para uma reutilização do espaço do antigo Tocaio. Com o entendimento encontrado com a família Serôdio, proprietária do edifício, a cidade a ele muito fica a dever a descoberta da solução que foi possível para o problema. 

quinta-feira, agosto 30, 2018

Toca da Raposa




Terá sido inaugurado em junho de 1960. Para Vila Real, este espaço, que originalmente com tinha um balcão corrido do lado direito, de bancos altos, e, ao fundo, uma pequena sala de refeições, representou uma imensa novidade. Era um “snack-bar”, algo que, na realidade, correspondia a um restaurante - e esse era um tempo em que, na cidade, não havia nenhum! (O restaurante que se lhe seguiu foi a “Churrasqueira”, em frente à Pastelaria Pompeia. O saudoso e justamente afamado “Espadeiro” só seria inaugurado em 1969).

Por aquele tempo, em Vila Real, só havia pensões - Excelsior, Mondego, Coutinho, Areias e poucas outras - e “casas de pasto”, neste caso inúmeras, quase sempre com portas de entrada “à Texas”, balcão com pipos por detrás, vinho ao copo e petiscos. Lembro (de memória rápida e muito, mesmo muitíssimo, longe de pretender exaustiva), o Alemão, a Cardoa, o Barracão, o Chaxoila, o 22, a Pépia, o Carrico, etc. Ah! E o Alcino, no largo Camões, em frente ao tribunal, de que deixo uma história (muito pessoal) ligada à Toca da Raposa.

Um dia, o Zé Luis Carneiro (hoje médico nos EUA) e eu, aí nos nossos 13 ou 14 anos, lembrámo-nos de telefonar de minha casa para o Alcino, em nome do dono da Toca da Raposa (que a cidade sempre conheceu como o “António da Toca da Raposa”), pedindo para lhe mandar, com urgência, uma grade de vinho tinto. Não sei qual de nós foi a voz do “António”, embora desconfie. Ao telefone, o “António” explicou então ao Alcino que tinha a casa cheia de gente chegada “do Porto” e que lhe tinha “falhado” o vinho. 

Minutos depois, pela Avenida Carvalho Araújo abaixo (a tasca do Alcino e a Toca da Raposa ficavam exatamente nos extremos opostos, vivendo eu também por ali) avançaram dois empregados do Alcino, carregando a grade de vinho “pedida”. Nós, entretanto, sentámo-nos a beber qualquer coisa no balcão da Toca da Raposa. 

A certo passo, da porta, ouvimos: “Ó senhor António, está aqui o vinho!”. Intrigado, o António saiu de lá de dentro e interpelou os rapazes: “Vinho?! Que vinho? Não pedi vinho nenhum!”. Eles lá explicaram que eram ordens do senhor Alcino, uma ”encomenda do senhor António”. Este decidiu tirar tudo a limpo e, à nossa frente, passou a desenrolar-se então uma conversa telefónica, crescentemente pouco serena, entre o António e o Alcino. Eu nem tinha coragem de olhar para o Zé Luis, com a vontade de rir, perante a ira do António com o Alcino, seguramente confrontado com a teimosia deste, que devia estar a insistir em ter dele recebido o pedido do vinho. Pouco antes da chamada ser desligada, ainda ouvimos o António berrar, no limite da fúria, que o Alcino devia meter o vinho dele num local físico que os limites de linguagem deste espaço me não permitem nomear. E lá vimos os rapazes, igualmente furiosos, regressar carregados com aquele que (não) terá sido o último vinho encomendado pela Toca da Raposa à tasca do Alcino.

Era assim, essa Vila Real dos anos 60, tempo de “partidas” simples que, com toda a certeza, tinham uma graça diretamente proporcional ao desagrado quem as sofria. Mas tudo já “prescreveu”, razão por que posso agora relatar isto, impune, escrevendo o que leram na esplanada da Toca da Raposa, ontem, num belo fim de tarde de verão. Mas não pedi vinho...

quinta-feira, março 23, 2017

Alvo manto


Se as coisas ainda são o que eram, esta neve primaveril que cai sobre Vila Real não vai "pegar" - como se dizia no meu tempo de infância, então fazendo figas para que o nevão fechasse o caminho para a escola. 

Nesse outro tempo, a neve caída na cidade, com ou sem fotografia (do Marius ou do Macário), era notícia garantida na meia página que "O Comércio do Porto", "O Primeiro de Janeiro" e o "Jornal de Notícias" - os três jornais do Porto que chegavam à cidade (havia também o vespertino "Diário do Norte", mas não se vendia em Vila Real) - dedicavam diariamente às principais cidades nortenhas.

Em minha casa, lia-se o "Comércio" e o "Janeiro", respetivamente comprados para o meu pai e para o meu avô. Todos os anos, por ocasião da queda da neve (nesse tempo, a neve parecia cair com maior regularidade), o meu pai lembrava:

- Ora deixa cá ver qual é o jornal que traz a frase batida "a cidade acordou sob um alvo manto de neve". 

É que essa figura estilística, muito própria de um gongórico jornalismo de província então em voga, era repetida com regularidade e sem pudor do ridículo.

Se não vinha nesses dois jornais comprados na loja do Albertino, o meu pai, antecipando o gozo de a encontrar, procurava-a no "Notícias", numa ida ao café no Excelsior, na Rosas ou na Pompeia (a Gomes foi para ele um pouso mais tardio). 

O "Notícias" era um jornal então menos conceituado, com muita nota desportiva da região (nisso só ultrapassado pelo "Norte Desportivo", do Alves Teixeira) e com um pendor para o crime e para o "sangue": "Carteiro de Contumil mata a sogra"... (Mas nunca, porque o respeitinho social-geográfico era muito bonito: "Crime passional em Nevogilde").

Amanhã, mais pela força do degelo do que pela melhoria do jornalismo, "cheira-me" que a cidade não vai acordar "sob um alvo manto de neve"...

quarta-feira, março 08, 2017

RTP


Acho graça aos filmes das primeiras emissões da RTP, na antiga Feira Popular, com a futura Vera Lagoa a apresentá-las. Já os conheço de cor, mas essa não foi a minha primeira RTP.

Para quem vivia "para lá do Marão", em Vila Real, a RTP era uma "coisa" de Lisboa, apenas falada nos jornais e na Emissora Nacional. Por algum tempo, bastante, mas cuja duração não posso precisar, a cidade não teve aparelhos de televisão, porque o "sinal" não chegava lá. 

Um dia, talvez em 1958 ou 1959, o meu pai recebeu um convite impresso, cuja imagem guardo na memória, enviado pela Rádio Patinhas, uma casa de eletrodomésticos que existia numa esquina da avenida principal da cidade, convidando "Vossa Excelência e a Excelentíssima família a assistirem à emissão da Radiotelevisão Portuguesa". E lá fomos, uma noite, juntamente com alguns escassos eleitos, sentar-nos dentro da loja, olhando um aparelho pequeno, a preto e branco, com uma imagem muito granulada e um som episódico. Cá fora, de cara colada às montras, amontoavam-se muitos curiosos, que não tinham o privilégio do convite. O "sinal" era muito mau, vinha da Lousã, mas aquilo era, para o miúdo que eu era, o "máximo". Tenho três recordações, porque as belas coisas novas nunca se esquecem: o Trio Odemira a tocar, Artur Agostinho e Gina Esteves a apresentar o "Quem Sabe Sabe" e números de magia e ilusionismo, creio que pelo "Conde de Aguilar". 

Algum tempo depois, a televisão começou a ser visível nas montras dos vendedores de aparelhos. Em Vila Real, na Casa Dionísio, concorrente do Patinhas, e, em férias, na Casa Ponte, na Praça da República, de Viana do Castelo. Depois, com o tempo, o mundo mudou e, pouco a pouco, todos passámos a ter televisores em casa, com as infernais antenas, os "potenciadores de sinal" e, mais tarde, os pesados "estabilizadores" de corrente. A partir de certa altura, havia mesmo quem colocasse no écran uma cobertura cobertura com ligeiras cores, uma patetice a sugerir uma antecipação do colorido. Essa cor chegou um dia, como também chegaria esse momento democrático do país que foi a abertura de outros canais. Antes, porém, já todos pagávamos a famosa "taxa", hoje disfarçada já não sei bem como.   

60 anos é uma bela idade. A RTP faz parte da história de todos nós e todos nós temos uma "história" com a RTP. A minha cruza-se também com os tempos que por lá passei, como militar, nos dias que se seguiram ao 25 de abril. E, nos de hoje, com um programa em que também por lá, de vez em quando, colaboro.

Deixo de parte a minha leitura da relação da RTP com o poder, a qual, só por si, já deveria ter merecido um estudo universitário - desde os tempos de Camilo de Mendonça, seu primeiro presidente, até aos de Gonçalo Reis, que atualmente a dirige, passando por um número infindo de figuras que marcaram os ciclos políticos. 

Agora, é ocasião apenas para dar parabéns à sexagenária RTP e a alguns amigos que por lá tenho.

quarta-feira, janeiro 04, 2017

Os protestantes


Na tarde de ontem, passei por um templo (por que não é igreja?) protestante, ao lado da (essa sim, conhecida como tal) igreja da Misericórdia, em Vila Real. E recordei-me do tempo em que, numa rua da cidade onde vivi nos anos 50 e 60 (do século passado, como agora se diz), foi criado um espaço (repito, não sei se se chama igreja) "dos protestantes". Creio que o primeiro na cidade.

A minha família era católica, mas imagino que o facto de eu ser, ao que creio, o único (repito, o único) miúdo da minha geração vila-realense que não fez primeira comunhão deva indiciar que a pressão para a prática religiosa no seu seio não deva ter sido muito forte. Corria uma tese familiar segundo a qual terei ficado doente no ano em que todos os meus colegas de escola primária passaram por essa fase; outra, menos verosímil, apregoava que eu tinha sido expulso da "doutrina" da Maria Vilar, por ter levantado a saia ou puxado um banco, fazendo-a cair, a uma menina. Seja como for, assim se formou um bom ateu. Ateu mesmo, nada agnóstico ou minimamente dubidativo sobre existências celestiais e questões correlativas.

Vem isto a propósito desses protestantes na minha rua. Lembro-me de, à época, ter suscitado perguntas na família sobre quem era "aquela gente" que, ao princípio da noite, com um ar que me parecia algo comprometido, se reunia num baixo alugado na casa do Rodriguinho Araújo, para fazer não sabia eu bem o quê. E tenho ideia do meu pai me ter explicado, no seu eterno respeito agnóstico pelas coisas religiosas (o meu pai usava chapéu e sempre o tirava quando passava frente a uma igreja ou cemitério), que "aquela gente" eram pessoas que seguiam ensinamentos religiosos um pouco diferentes daqueles que eram cultivados nas igrejas onde as pessoas da nossa família iam. Não me recordo de ouvir o menor juízo valorativo sobre qualquer dos credos.

Tenho bem presente que então criei um respeito muito grande por essas pessoas e, nesse tempo de quase unanimidade católica, via com alguma admiração quantos se arriscavam ao olhar desdenhoso (porque era isso mesmo que eu detetava) dos vizinhos e à quase clandestinidade do exercício a que se dedicavam, que rapidamente me apercebi ser fortemente combatido pela igreja católica. Com os anos, a própria designação de "protestantes " - os que protestavam, atitude que identificava a coragem - foi-me seduzindo, talvez por ligá-la a uma contestação do "statu quo". Verdade seja, só anos depois cheguei a Martinho Lutero.

domingo, abril 14, 2013

Azul, senhor Branco!

Alguns amigos são de opinião que este blogue tem publicado histórias em demasia sobre Vila Real, cidade que poucos leitores conhecem e para cujas idiossincrasias a curiosidade do mundo estará escassamente mobilizada. Talvez assim seja. Eu, porém, tenho a sensação, porventura errada, de que muito desse pequeno universo de província pode acabar por ser uma espécie de amostragem de todo um país que, com mais ou menos nuances, também se revia, um pouco por toda a parte, em muitas figuras e historietas simples, mais ou menos caricaturais, que eram o retrato quase ingénuo de um outro tempo. E que, também por isso, tem graça fixar por escrito.

Recordo-me do senhor Branco já como uma figura idosa, à porta da centenária livraria e papelaria que leva o seu nome e que constitui um dos marcos da vida comercial de Vila Real, na sua rua Direita. A seu respeito, toda a cidade do meu tempo contava um episódio, que se crê verdadeiro, e que deu origem a uma expressão que passou para a posteridade local.

Ao que se sabe, o senhor Branco teria um fraco especial por uma "criada" (era assim que se dizia, claro) lá de casa. O namorado da rapariga era por esta acolhido discretamente, com regularidade, no vão da íngreme escada que dava acesso do primeiro andar para a rua. Numa dessas ocasiões, ao dar-se conta que o senhor Branco vinha a entrar, a rapariga foi ter com ele aproveitou para pedir-lhe, quiçá como legítima compensação pela sua complacência face aos seus avanços, se ele lhe poderia comprar uma gabardina que o "seu irmão" muito necessitava - na realidade, correspondia apenas a um desejo do namorado, o qual, pelos vistos, tinha bastante bom "feitio" e não se importava por aí além de partilhar os favores da rapariga.

O senhor Branco, enlevado como andava pela jovem, terá dado mostras de poder aceder ao pedido e, passando à parte prática do assunto, perguntou que cor de gabardina quereria "o irmão". A criada hesitou por um instante. Foi então que, do vão da escada, talvez inquieto pela possibilidade da opção escolhida poder vir a não ser do seu agrado, se ouviu, a medo, a voz do rapaz:

- Azul! Azul, senhor Branco!

A história pode não ter sido bem assim. Mas pouco importa. Julgo que, na minha geração, nenhum vilarealense deixava de conhecer este episódio e esta frase, que aqui recordo, com um abraço amigo ao Alfredo, neto do senhor Branco.

quarta-feira, abril 03, 2013

O arbóreo

Cruzei-me com ele há dias, numa rua de Vila Real. Já o não via há bastante tempo. Tive logo uma reação de imediata precaução. É que estava perante um conhecido praticante da chamada conversa "arbórea".

Tenho este assunto, de há muito, bem estudado. A conversa "arbórea" é um estilo de expressão oral que se carateriza por uma deriva temática obsessiva, tendo como pretexto o emergir de uma qualquer referência significativa. A conversa do "arbóreo" segue como os ramos de uma árvore, de onde surgem novas ramificações, as quais, por sua vez, se subdividem.

Diga-se, com franqueza, que nenhum de nós está imune a esta prática. Num diálogo solto e informal, todos caímos, frequentemente, neste vício. Eu faço-o, com regularidade e de modo consciente. Só que há quem o exercite por regra e seja completamente incapaz de o evitar. É o caso do pessoal que é tipicamente "arbóreo".

Uma vez mais, o meu interlocutor não desiludiu as expetativas - e só transcrevo aqui o que me disse pela certeza segura de que ele não utiliza computadores:

- Então já saiu de Paris? Deixou-se de embaixadas, não é? Era tempo! Bela cidade, Paris! Sabe que tenho lá uma irmã, que trabalha na banca? Nunca a encontrou? Está casada com o Meireles, você é capaz de conhecer, está muito ligado ao Florindo, aquele advogado que esteve nos governos do Soares. Você é amigo do Soares, não é? Sabe se está melhor? Deve estar. Li num jornal que ele já fez um elogio à entrevista do Sócrates. E a si, o que lhe pareceu a "aparição" do homem? O que é que ele pretende? Belém ou só atazanar o Seguro? Acha que ele vai voltar? Não gosto dele, mas pareceu-me em boa forma. O tipo tem cá uma raça! Ele ainda anda por Paris, não é? Você via-o muito por lá? Ao tempo que eu não vou a Paris! Sabe que cheguei a pensar fazer-lhe uma vista lá na embaixada? Mas, com a crise, não deu...

Nem sempre um "arbóreo" fecha o discurso, como este meu conhecido fez, regressando com a conversa "a Paris". As mais das vezes, prossegue na sua imparável viagem pelas palavras, sem limites nem contenção. Só raros "arbóreos", no delírio quase intravável do seu curso verbal, chegam à frase consciente:

- Já me perdi. De que é que estávamos a falar?

Neste passo da conversa, tida na esquina entre o ourives o o Zézé (só um vilarealense sabe o que é isto), em frente ao Santoalha e ao antigo Rafael (já houve por ali um sinaleiro!), apenas o surgimento oportuno de outro conhecido me salvou. E o "arbóreo" lá desandou, em direção ao que, noutros tempos, foram o Zeca Martins e o Teixeira Pelado...

sexta-feira, março 29, 2013

A sé desportiva

Há poucas horas, ao passar pela sé catedral de Vila Real, neste tempo pascal, lembrei-me de uma historieta passada no "Verão quente" de 1975.

Eu tinha vindo por uns dias à cidade, nesse tempo militar em que misturava o meu radicalismo político com as provas do concurso para a diplomacia. Numa reunião de manhã, no regimento de Infantaria 13, tivera uma conversa menos fácil com o tenente-coronel Adão, comandante em exercício, junto de quem tentara garantir proteção militar para as sedes de alguns partidos de esquerda, que a voz corrente dizia que poderiam ser ameaçadas pela manifestação católica (que hoje se sabe muito mobilizada pelo MDLP) que teria lugar no dia seguinte. Usava as credenciais político-militares que advinham da minha pertença ativa ao MFA, mas cedo vi que o ambiente "no 13" estava mais com os manifestantes do que com a nossa ala "progressista". Por essa razão, o simples alferes que eu era pouco podia fazer, não obstante alguma desproporcionada influência de que, tal como outros milicianos, disfrutava então em certos meios militares de Lisboa.

Nessa tarde, na pastelaria Gomes, sentava-me com um amigo que partilhava as mesmas preocupações e cumplicidades, conversando em voz baixa sobre os acontecimentos que aí vinham. Lá fora, vimos aproximar, histriónica, uma das figuras da "reação" local. É preciso conhecer bem a Vila Real da época para se entender o facto de, na cidade, conviverem, sem dificuldade, pessoas com diferentes e até antagónicas ideias. Eu sabia que essa figura, entrada que fosse na Gomes, se sentaria inevitavelmente à nossa mesa, até pela certeza de poder encetar conosco uma estimulante disputa verbal. Por essa razão, num segundo, combinei um estratagema com o amigo que tinha a meu lado.

Como expectável, o recém-chegado juntou-se-nos para um "covilhete" (se o leitor não sabe o que isso é, visite Vila Real) ou uma fatia de bôla de carne. Olhando para a mesa, viu esquiçado numa página branca um desenho do que parecia um edifício, em forma de cruz. 

- O que é que vocês estão a tramar?, perguntou, curioso, ciente de que, com dois "esquerdalhos" como nós, esse desenho tinha, com toda a certeza, um objetivo não inocente.

- Nada que te interesse, disse-lhe eu, num tom que só aumentou a sua curiosidade.

- Uma cruz?! Quase parece a planta da sé...

- Pronto, "tá" bem, é a sé. E depois?

- Mas por que razão vocês estão a desenhar a sé?, alarmou-se.

- Ó homem! Isto é só uma ideia, mas, se prometes segredo, podemos revelar-te que há uma séria hipótese do espaço da sé poder vir a ser transformado numa área desportiva, de apoio aos tempos livres. Isto ainda não se sabe, mas a sé deve passar para a tutela do INATEL.

O visitante estava boquiaberto. E escandalizado. As suas piores suspeitas sobre as ideias dos "comunas" (para a direita, à época, esse espetro insultuoso era muito alargado) confirmavam-se em pleno. A sé catedral?! A velha igreja de S. Domingos transformada em recinto gimno-desportivo (não me recordo se o conceito já existia, à época).

Generoso, entendi dever ser um pouco mais detalhado:

- Vamos a ver se nos entendemos. Tens que concordar que há, na cidade, um défice evidente em matéria de equipamentos para lazer. A União Artística não chega, a "Católica" não tem espaço e a "Bufa" (nome depreciativo que dávamos à Mocidade Portuguesa) "já era". Ora a sé está desocupada a maior parte do tempo e está num lugar central ideal, bem fresco no Verão. Quem goste de rezar ou de missas tem imensas igrejas. A "capela nova" está aqui a dois passos, tal como a Misericórdia. E S. Pedro é logo ali em cima. A nossa ideia é procurar adaptar a área dos altares laterais da sé para dois bilhares livres e o altar principal para um "snooker". A questão da nave central é mais complicada, porque as seis colunas criam problemas à proposta de aí fazer uma zona para voleibol. Se assim não for, teremos de ir para a alternativa de mesas de ping-pong. Há quem pense num bilhar grande às três tabelas, que nem o Excelsior nem a Pompeia têm, mas resta saber se haverá clientela para isso.

O "reaça" esbugalhava os olhos. "Tomarem" a sé catedral, o centro religioso da cidade?! Sossegámo-lo, com modéstia temporal de intenções:

- Ó pá, isto ainda está apenas em planos. Estamos também a estudar a questão das balizas para futebol para pôr no adro. Por isso, só daqui a uns tempos é que se iniciará o desmantelamento da sé. Mas atenção!: é nossa preocupação preservar bem o recheio. O projeto é mandar muitas coisas para a Senhora de Lurdes.

A menção da capela da Senhora de Lurdes, uma igreja desativada, lá para os lados da estação ferroviária, em acentuado estado de desagração, aumentou a ira do já desestabilizado conservador.

Sempre tive uma excecional capacidade de sustentar estas historietas sem me desconcertar. Mas o meu comparsa estava, pouco a pouco, a deixar-se rir. Por isso, levantou-se e fez menção de sair pelas portas de guarda-vento. Mas, nesse movimento, teve ainda ânimo para estacar junto ao embasbacado reacionário e dizer-lhe, convicto:

- Não eras tu que gostavas de jogar matraquilhos? Pois é nossa intenção encher a sacristia de mesas de "matrecos". E de graça, porque isto agora passa a ser tudo do povo, pá!...

A patranha esclareceu-se nos minutos seguintes. Mas senti que o nosso amigo (porque era nosso amigo) "reaça" não ficou de todo sossegado.

Para a história, registe-se que a manifestação do dia seguinte não provocou violência. O PCP, acantonado na rua da Misericórdia (ironia toponímica...), não precisou de usar as caçadeiras que me disse ter para defesa da sede e o MDP-CDE, sobre a "Mabor", lá se aguentou às provocações lançadas da avenida, comigo encostado ao Tocaio, a ver a onda católica passar. Já o PS nada tinha a temer, porque o padre Sarmento, eixo da máquina clandestina da "Maria da Fonte", tinha-os, e bem justamente, por "compagnons de route" anti-comunista, nesse Verão complicado e muito "quente".

E a Sé, a magnífica igreja de S. Domingos, lá continua intocada, agora com uns belos (mas, para alguns, controversos) vitrais de João Vieira, que vivamente recomendo sejam vistos.

sexta-feira, março 22, 2013

O Bertelo e as Finanças


Há dois tipos de gerações em Vila Real. As que conheceram o Bertelo e as que existem depois dele. É para as primeiras que eu aqui escrevo esta memória, tentando que as posteriores possam perceber o que perdeu ao já não fazer parte da cidade do Bertelo.

Sempre me lembro de mim conhecendo o António Bertelo. Não me recordo da cidade antiga sem ele. Era uma figura de feições algo disformes, com um evidente atraso psicológico, que, por muitos anos, serviu de "moço de recados" de muita gente, que lhe pagava a execução de tarefas simples, de levar-e-trazer coisas. 

A minha geração tratava-o por "tu" e, com naturalidade, ele procedia da mesma maneira. Um dia dos anos 80, à entrada para a redação de "A Voz de Trás-os-Montes", ao cumprimentá-lo, notei que o Bertelo me tratou por "senhor doutor". Reagi de pronto: "estás parvo ou quê, António? Então não me tratas por tu?". O Bertelo fez um sorriso que caía estranho naquela cara atípica, mas não me creio que, desde então, tivesse optado por mudar essa forma de tratamento, o que, para minha genuína tristeza, quebrou uma ligação simples que vinha desde a minha infância.

Durante muito tempo, o Bertelo - o nome vem da aldeia dos contrafortes do Marão de onde era originário - apareceu ligado a tarefas de uma peixaria que havia na rua Direita, o que fez com que ficasse associado odorificamente a essa tarefa, bem notória  à distância. Depois, sem que nunca tivesse havido um sensível "improvement" em matéria de odores, o Bertelo teve outras atividades, desde auxiliar nas entregas do jornal da cidade, de refeições ao domicílio e, por um longo período, ao serviço da sé catedral, neste caso sob a tutela do padre Henrique, que muito o protegeu. Nos últimos anos de vida, creio, preponderava no controlo do portão do seminário.

Quando coadjuvava aquele pároco da Sé, o Bertelo foi protagonista, num domingo de Páscoa, de um episódio memorável. Ia ele pela avenida Carvalho Araújo acima, à frente do padre, com a cruz na mão, quando uma gandulagem decidiu chamá-lo, à distância, por um nome que, à época, ele abominava: "Manaca". O Manaca era um jogador que provocara um contencioso sério entre o Sporting e o Benfica, com um desfecho favorável ao primeiro. Chamar "Manaca" ao Bertelo, indefectível benfiquista, era o suprassumo do insulto. Daí que, em reação à provocação, esquecendo as vestes litúrgicas que trazia, tivesse decidido "plantar" a cruz, bem vertical, no relvado do canteiro junto à estátua de Carvalho Araújo e perseguir em corrida quem o provocara. Sob o olhar divertido de toda a gente, o padre Henrique ficou a gritar pelo Bertelo, que demorou minutos a acalmar e a retomar o auxílio à visita pascal.

O Benfica era a "perdição" do Bertelo. Um dia de 1966, um grupo de vilarealenses da cor do clube da águia deslocou-se a Lisboa para ver uma partida entre o Benfica e o Manchester United. À falta de lugares no carro, o Bertelo teria viajado no porta-bagagens (mas há versões que contradizem esta), com alguém a ter a simpatia de lhe garantir um bilhete para o estádio. Conta-se que, nos primeiros minutos de jogo, chegou a levar alguns "cachaços", porque estranhamente lhe terá dado para "puxar" pelo Manchester, para grande surpresa dos companheiros de jornada. A explicação veio logo de seguida: o Bertelo via muito mal e como o Benfica naquela noite jogava de branco havia decidido, com naturalidade, apoiar os "vermelhos"... que era o uniforme da equipa adversária. (Talvez tivesse sido melhor se a ilusão se tivesse prolongado até ao fim do jogo: o Benfica perdeu por 5-1, com dois belos golos de George Best, nessa fabulosa equipa de Busby).

O Bertelo foi, muito provavelmente, por muitos anos, a figura mais popular de Vila Real. Respeitador, era extremamente simpático para quem bem o tratava. Sempre com a sua típica boina basca, metia o braço a muitos conhecidos que se passeavam pela rua Direita ou pela rua Central, fosse essa pessoa o Governador Civil ou o presidente da Câmara, um advogado, um estudante ou um empresário. Ninguém de bem se afastava do Bertelo, um homem honestíssimo, que não bebia uma gota de álcool, cuja pobreza o levava a aceitar ajudas de quantos com ele simpatizavam. Com gosto, fui das pessoas que, até ao seu desaparecimento, lhe ia dando algum apoio, sempre que com ele me cruzava, nas minhas subidas à "Bila", como nós chamamos à nossa cidade.

Por que razão trago hoje o Bertelo ao blogue? Porque me lembrei de uma frase que o meu pai, com simpatia, sempre recordava do Bertelo, quando um dia este lhe pretendeu transmitir que passara a fazer alguns recados para a Repartição de Finanças de Vila Real. Na sua simples e permanente disponibilidade, de quem se esforçou sempre por ser útil, aproximou-se do meu pai e disse: "Desde a semana passada, estou a trabalhar nas Finanças. Se precisar alguma coisa de lá, é só dizer!" 

Tenho saudades do Bertelo. É que, hoje mais do que nunca, nestes tempos de "troika", é que dava jeito ter um amigo nas Finanças...

segunda-feira, março 11, 2013

O bispo e as Felicianas

Ao ouvir, há pouco, na rádio, notícias sobre o conclave para a eleição papal, recordei-me dos tempos do concílio Vaticano II, realizado em Roma, entre 1962 e 1965. Dentre os 29 membros portugueses de uma delegação do episcopado português a Roma, contava-se o bispo de Vila Real, dom António Valente da Fonseca. Como administrador apostólico ficou, pela diocese, monsenhor Libânio, uma figura esguia que ainda hoje justifica o nome dado a um cadeirão comprido, herdado do meu avô, a que sempre chamamos a "cadeira do padre Libânio", não obstante o próprio nunca a ter experimentado.

Nas ociosas noites do Verão vilarealense, havia muito pouco que fazer, quando eu andava pelos meus 15 anos. Por isso, num grupo de amigos, alguém se lembrou de inventar uma chamada telefónica "feita" pelo bispo, que, desde há samanas, estava em Roma para o concílio, destinada ao monsenhor Libânio, que então vivia no seminário de Vila Real.

O local do "crime" foi a casa do celebrado fotógrafo da cidade, Mário Silva, "Marius" de nome artístico, pela mão do seu filho, António Manuel. O autor material da chamada telefónica foi um primo deste, Dionísio Rodrigues da Silva, o "Nizo", um amigo já desaparecido, talvez o elemento mais velho desse pequeno grupo que se juntou para a organização da "partida".

Desconhecedores do que era uma chamada internacional, ao tempo obrigatoriamente feita através de telefonista, inventámos um conjunto de ruídos que supostamente credibilizariam a comunicação. Ligámos para o número do seminário, pouco depois da hora de jantar. Atendeu-nos uma voz a quem, num italiano de má opereta, deixámos a indicação de que "don António voglio parlare con il signor don Libânio". A chamada era entrecruzada por arbitrários silvos e apitos, sons secos e uma profusão de sinais que, no nosso entender, poderiam fazer parte de uma ligação telefónica internacional. A nossa preocupação era escusada: no seminário, o porteiro sabia de italiano e de comunicações externas bem menos do que nós...

Após alguns minutos, ouviram-se passos apressados no lagedo  de mármore da sala de entrada do seminário, onde se situava então o único aparelho telefónico da casa: Um ofegante dom Libânio surge então ao auscultador. Do outro lado, "de Roma", o senhor "dom António" interpela-o:

- Então, Libânio, como vai você? E a diocese?

Extasiado com a oportunidade proporcionada pela maravilha das comunicações, dom Libânio respondeu:

- Muito obrigado, senhor bispo. Vai tudo muito bem, graças a Deus. E como passa vossa excelência reverendíssima?

- Estou bem, Libânio, estou bem. Mas diga-me uma coisa, ó Libânio, com que estou preocupado: como é que vão as nossas Felicianas*?

Dom Libânio presumiu ter ouvido mal, tanto mais que as comunicações, à época, eram más e o lenço que utilizávamos para tentar tapar a voz criava uma distância que afetava a audibilidade das mensagens.

- Como? Não estou a ouvir bem... Como disse, excelência reverendíssima?

- As Felicianas, Libânio, as pequenas da Vila Velha que sempre alegram as nossas noites por aí...

O pobre do administrador apostólico deve ter ficado à beira de uma apoplexia. As Felicianas era um plural pouco magestático para designar umas raparigas, da mesma família, que facilitavam alguns prazeres físicos tarifados, bem conhecidas de toda a cidade.

- Não consigo ouvir, senhor bispo! Não ouço quase nada! Vou ter de desligar...

E assim fez. Nós já estávamos no limite da gargalhada coletiva. Mas tínhamos ganho uma excelente noite.

* o nome talvez não fosse bem este...

sábado, março 09, 2013

Revelação

O cenário da curta conversa era clássico: um velório. Ontem, em Vila Real.

Chegou sozinho. Não percebi bem quem era. Foi simpático e agradável. Mas, quase de imediato, tentou "confessar-me" sobre a atual situação política no país. Procurava, claramente, "tirar nabos da púcara". Como eu não o conhecia bem e, pelos vistos, ele também me não conhecia muito melhor a mim, a conversa andou um pouco às voltas, comigo a dizer umas coisas redondas e óbvias, para perceber onde é que ele queria chegar. De certo modo, o diálogo divertia-me, embora o "outing" político me parecesse um exercício pouco adequado para aquele momento.

A certo ponto, olhou para ambos os lados, aproximou-se um pouco e deixou, em voz baixa, a informação: "Sabe? Eu apoio este governo e estou de acordo com quase tudo o que ele tem feito". E voltou a olhar em volta, claramente à espera que ninguém tivesse ouvido esta sua revelação.

O que é que eu lhe disse? Apenas o procurei sossegar, dizendo-lhe: "tem todo o direito a ter essa opinião". Sorriu-me, creio que grato, embora disso não tenha uma absoluta certeza. Minutos depois, vi-o afastar-se. Sempre sozinho.

Tempos difíceis, estes. Para todos, como se vê. 

sábado, março 02, 2013

Protesto

Olhei para a cara das pessoas que hoje estavam na manifestação que, em Vila Real, se associou ao protesto nacional - contra a "troika", o governo e algumas entidades mais. Pareceu-me haver algum desânimo pelo facto do cansaço, e talvez do sentimento da eventual inutilidade do gesto - porque ninguém de bom-senso pensará que há hoje mais conquistados para as políticas praticadas -, ter afastado muita gente e transformado este evento numa sombra do protesto de setembro de 2012. Parece-me, porém, que laboram num equívoco. Esse protesto de então foi único, porque foi o primeiro momento em que aquele Portugal que não era parte do setor público (jornalistas e comentadores incluídos) sentiu que lhe estavam a "ir ao bolso". Fez toda a diferença!

O humor faz também parte destes exercícios e, pelo menos em Vila Real, ele ainda persistiu em alguns cartazes. Um deles rezava, de forma muito transmontana e numa bela transcrição fonética, dirigido ao poder: "num baleides um tchabelho". Sorrir, mesmo de forma amarela, ainda não paga imposto.

quarta-feira, fevereiro 27, 2013

UTAD

A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) faz 25 anos da sua existência.

A UTAD é a universidade de Vila Real, a terra onde eu nasci. Fruto da feliz conjugação da iniciativa de entidades locais - e gostava de distinguir aqui, por elementar justiça, a figura do Engº Manuel Cardoso Simões - com um conjunto de personalidades que haviam tido já um percurso académico nas antigas colónias, a ideia de criar uma estrutura de ensino superior na capital transmontana conseguiu vingar no seu caminho e garantir um espaço de afirmação que, anos mais tarde, veio a consagrar-se na criação da atual universidade.

Muita água passou, entretanto, sob as pontes do rio Corgo. A UTAD evoluiu, transformou-se, cresceu e prestigiou-se, em especial em algumas áreas em que a sua massa crítica soube firmar-se com qualidade. A UTAD criou e agregou a si novos docentes, num conjunto muito alargado de valências especializadas. Dela saíram quadros técnicos de grande valia, hoje espalhados pelo país. Com universidades estrangeiras, a UTAD soube criar importante parcerias de cooperação. 

A UTAD não ficou imune às crises que a vida universitária portuguesa atravessa, elas próprias reflexo do que se passou na generalidade do país. A meu ver, a UTAD tem perdido algum tempo face à inevitável necessidade de vir a redimensionar-se à luz desse novo cenário. Essa perspetiva foi por mim claramente transmitida, tal como por muitas outras pessoas que aí desinteressadamente colaboraram, durante os anos em que chefiei o Conselho Geral da UTAD.

A cidade de Vila Real deve imenso à UTAD. Sou de opinião de que a cidade não soube até hoje criar - e interessa-me pouco saber quem terá a maior quota-parte de culpas - um laço adequado com a sua universidade. Uma coisa me parece evidente: a cidade de Vila Real não seria a mesma sem a UTAD.

Parabéns à UTAD e a quem hoje a compõe, uma casa onde deixei amigos e cujo futuro continuo a seguir com atenção.   

terça-feira, fevereiro 12, 2013

O nosso património

Acabo de ver num rodapé televisivo que o carnaval de Torres Vedras deseja ser consagrado como património imaterial da humanidade da UNESCO.

Já por aqui disse o que pensava, à luz de alguma experiência que tenho do assunto, sobre a necessidade do Estado português estabelecer critérios muito estritos na aferição destas propostas, antes de lhes dar a sua bênção oficial. A alternativa é apenas o ridículo.

Se as coisas continuam por este caminho, voluntario-me para ajudar à consagração das "cristas de galo" como património material doceiro de origem conventual que Vila Real tem a apresentar à humanidade. E, na reserva, ficam os "pitos de Santa Luzia"*.

* um leitor atento lembrou, e bem!, as "ganchas de S. Braz"

O Honório e Jaime Neves

Naquele tempo, não havia em Vila Real quem não conhecesse o Honório. Era uma figura um pouco bizarra, magro, de óculos redondos, vestido quase sempre de preto, com um chapéu que lhe desenhava um perfil físico que lembrava Fernando Pessoa. Tinha por profissão ser contínuo na escola do Magistério primário. Lembro-me dele escuteiro, como me recordo de o ver lançar papagaios aos domingos, aproveitando o vento da "marginal", sobre o parque florestal.

O Honório era aquilo que, com alguma crueldade, poderíamos qualificar de um "pobre diabo". Muitas vezes gozado pela rapaziada - que, pelas ruas, lhe chamava o X9 -, o Honório apareceu um dia casado, com casa em Folhadela. Numa excursão a Lisboa, ficou famosa uma coça que terá dado na mulher. 

A pobre senhora, entretanto, deixou viúvo o Honório e este envolveu-se numa questão de partilhas com os cunhados, que se arrastava pelos tribunais, sem decisão. Foi isso, pelo menos, o que um dia ele me contou. Na altura, pediu a minha ajuda, nos termos de quem achava que Lisboa era uma Vila Real "grande", onde as pessoas se encontravam com regularidade, como por lá se fazia na "esquina da Gomes" ou no "cabo da Bila":

- Quem me podia ajudar a resolver o assunto, eram vocês, lá em baixo, em Lisboa. Quando vocês se encontrarem - vós, o António Barreto, o Jaime Neves e o Albano Bessa Monteiro - bem que me podiam tratar do processo, com os conhecimentos todos que têm.

O Honório convocava aqui as pessoas "influentes" que conhecia e que andavam "lá em baixo", por Lisboa. Recordo-me de ter respondido (eu tratei-o sempre por tu, nos últimos anos ele tratava-me por "vós"), com alguma ironia, ciente da implausibilidade do cenário que ele desenhava:

- Podes ficar descansado! Se eu, um dia, eu me encontrar com o Barreto, o Neves e o Albano, garanto-te que te resolvemos o assunto.

O Albano Bessa Monteiro era (e é) um velho amigo. À época, eu não conhecia pessoalmente António Barreto. E nunca na minha vida alguma vez falei com Jaime Neves. Lá por sermos ambos vilarealenses, só pela cabeça do Honório poderia passar a ideia de que éramos amigos. 

Lembrei-me desta história, há dias, quando foi noticiada a morte de Jaime Neves.     

quarta-feira, janeiro 09, 2013

Agenda Doméstica

  
Anteontem, em Lisboa, vi à venda a "Agenda Doméstica", referente a 2013. E lá estava a descrição do seu conteúdo: "decoração do lar, conselhos de beleza, elegância feminina, culinária, etiqueta, contos, curiosidades, anedotas, jogos, passatempos e prémios". Não abri, sequer. Mas sorri intimamente.

A "Agenda Doméstica", nos anos 50, 60 e creio que até aos anos 70, era uma presença anual obrigatória em nossa casa. Teoricamente era adquirida para a minha mãe, por via da culinária e de conselhos domésticos práticos que carreava (impressionava-me sempre a plêiade de soluções simples para tirar nódoas, que creio que ninguém depois seguia).  A "Agenda Doméstica" era (e é) editada pela Porto Editora, razão por que tinha grande divulgação no Norte do país. Nunca fomos tentados pela concorrência, a "Agenda do Lar", editada por "O Século", que se via mais em casas de Lisboa. Ah! e a "Agenda" era e continua a ser assinada por "Maria Raquel", um nome que sempre me pareceu mais fictício e mais próximo da histórica "Marta Neves" (que por muitos anos nos bombardeou com ofertas "imperdíveis" das Seleções do Reader's Digest).

Manifestamente contra a vontade da minha mãe, suposta destinatária primeira da "Agenda" (como familiarmente era designada), e que por isso sempre protestava levemente, o volume brochado era acaparado, imediatamente após a compra, pelo meu pai e pelo meu avô, durante vários dias, com uma única finalidade: resolver os 12 problemas de palavras cruzadas que a "Agenda" anualmente trazia. Mas o que é que de tão particular essas palavras cruzadas tinham? É que elas eram, de muito longe, das mais difíceis dentre todas quantos se podiam encontrar em jornais ou mesmo em revistas de cruzadismo. Como especial aliciante, ligada à resolução com êxito desses problemas, estavam prémios dados pela Porto Editora.

Recordo-me da imensidão de horas que, de lápis e borracha na mão ("as palavras cruzadas nunca se fazem a tinta", aprendi para a vida), o meu pai e o meu avô dedicavam à descoberta das soluções (que só seriam publicadas na edição do ano seguinte!), comigo a servir, à medida que crescia, de cada vez mais dedicado e entusiasmado ajudante, com uma imensidão de idas ao dicionário - a dúzia de volumes do clássico "Moraes Silva", entre nós conhecido pelo "malho", imbativel no género, de que para sempre decorei as palavras que abriam e fechavam cada volume ("a - armada", "arma de - cestina", "cesto - desvalor", etc).

Estabilizada a solução ao final de algum tempo, enviava-se esta pelo correio e ficava-se a aguardar. Se acertávamos - e não me recordo de termos falhado algum ano -, lá vinham, tempos depois, para nosso gáudio, livros de culinária, dicionários ou outras edições da Porto Editora, a título de prémios. E, na edição do ano seguinte, surgia publicada a lista de quantos tinham acertado. Nessa lista, e por muitos anos, figuravam, referenciadas como hábeis "cruzadistas" que tinham, com êxito, resolvido todos os problemas, algumas dezenas de senhoras de Vila Real (quem lesse a "Agenda", devia ficar com a impressão de que Vila Real era uma "potência" do cruzadismo feminino português), fruto da popular distribuição que o meu pai fazia, pelas pessoas amigas, do resultado do "trabalho" que fazíamos na nossa família. Sempre suspeitei que, na "Porto Editora", Vila Real devia estar sob constante suspeita...

Memórias de um Portugal simples ou, como dizia O'Neill, "incrível país da minha tia, trémulo de bondade e de aletria".

terça-feira, dezembro 25, 2012

À esquina da Gomes

Sabem o que é a Gomes? A maioria dos leitores deste blogue não sabe, estou certo. Tal como acontece em todas as cidades, Vila Real tem um café de culto. Neste caso, a Pastelaria Gomes.

Porquê a Gomes? Porque sim. Distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, nunca custou nada atravessar a rua.

A Gomes começou na "Gomes velha", onde ainda me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e onde hoje se vai pelo bolo-rei, pelas "cristas de galo", pelos "jesuítas" ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz. Foi depois construído o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que nunca ninguém viu funcionar. E que tinha, no alto de um mastro, uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta à noite, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.

Se a memória me não falha, a Gomes foi, em Vila Real, o primeiro café onde as mulheres podiam ir, com naturalidade, sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre "em cima") com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada das senhoras na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.

Na Gomes sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", de "polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.

A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do Zé Araújo), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, onde se colocavam jornais com suporte de madeira e onde, durante muito tempo, esteve o telefone preto. Essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria isso, mas quem não for de Vila Real sabe lá quem era o Achilles) induzem uma visível timidez em certos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio, seguido de cochicho. No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que se prolonga então pela esplanada. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas.

Foi pela Gomes que eu comecei a parar, ainda nos tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política. Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste blogue me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram ao Governo civil.

A Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da Situação ou da Oposição - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem. Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. E por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.

A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada, o pessoal, embora simpático, tem um ar um tanto errático e demasiado "casual" para o meu gosto - eu venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José. Mudaram agora de traje, depois de uns balandraus que usaram, pretendidamente de côr laranja, muitas vezes já a justificarem uma visita aos sucessores do Alarcão (se não é vila-realense, passe para o parágrafo seguinte). Prova de uma mudança radical da Gomes é o facto de, julgo que pela primeira vez na sua história, "A Voz de Trás-os-Montes", no ano passado, não trazer um anúncio natalício que já havia ficado histórico na cidade: ao canto de um grande espaço em branco, havia uma nota que dizia: "se a Pastelaria Gomes necessitasse de publicidade, utilizaria este espaço". As instituições - e a Gomes é uma instituição - fazem-se de simbolismos. E estes devem respeitar-se, sem o que a identidade se esvai. Atenção, ó gente da Gomes!

Hoje, dia de Natal, a Gomes estará fechada, creio eu (com a crise, sabe-se lá!). Mas há um lugar que, com toda a certeza, não "fecha" e à volta do qual a cidade gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do (regressado) Pelourinho. Por lá nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, a esquina é sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que do vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outros), nesta época natalícia logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que se utiliza até aos Reis. Por lá se passeiam, nos dias 25 de dezembro, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas da véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, a memória sedimentada desde a infância. Como aqui agora fiz, "preso", este ano, a Paris.

(Este texto surgiu aqui no dia 25 de dezembro de 2011. Republico-o hoje, "a pedido de várias famílias" (mais precisamente, três), porque não terá perdido atualidade - a Gomes nunca muda! Perdem-se, contudo, alguns deliciosos comentários que, quem assim quiser, pode ir procurar na versão original. Ah! na fotografia, expressionisticamente "suja" de hoje, a "tal" esquina da Gomes está à direita. Ela é mais famosa que fotografada.)

sábado, dezembro 22, 2012

Este Natal

Este ano, não passarei o Natal em Vila Real. Na vida, isso aconteceu-me apenas duas vezes: quando vivia em Londres, já nem sei bem porquê, e, no ano passado, porque fiquei por aqui, por Paris, na ressaca de uma questão de saúde. 

Devo dizer que não sinto falta deste Natal, em Vila Real. Seria um Natal triste, depois de um tempo recente em que, por lá, perdi pessoas com cuja falta me não reconciliei. Aliás, nos últimos anos, pelas leis da vida ou da morte, chamem-lhe como quiserem, os Natais têm vindo a tornar-se momentos um pouco mais sofridos do que agradáveis.

Nem sempre foi assim. Até à minha adolescência, os meus Natais dividiam-se entre Viana do Castelo e Vila Real. E eram muito, mesmo muito agradáveis e alegres.

"Exilado" em Vila Real desde os anos 40, o meu pai rumava a Viana com a família, poucos dias antes do Natal, do mesmo modo que fazia nas "férias grandes" e na Páscoa. Invariavelmente, ano após ano. Não tinhamos carro. Íamos de comboio, em três etapas épicas. Primeiro de Vila Real à Régua, na velha linha do Corgo, bancos de "sumopau", com as faúlhas da fumarada das máquinas a entrarem-nos pelos olhos, se acaso espreitávamos pela janelas. Da Régua ao Porto, o comboio era melhor, embora mais monótono. Por um tempo, o Douro ia ali ao lado, mas nós, nessa época, nem olhávamos para ele. (Era uma viagem em que, no Verão, em algumas estações, mulheres vendiam regueifas e água em recipientes de barro: "Água e bilha, 15 tostões!", apregoavam).  A aproximação do Porto, anunciada por túneis sucessivos cuja travessia nunca, até hoje, me sossegou, induzia-me uma recorrente inquietação. É que via o meu pai, com a sua organização meticulosa, preocupado em conferir ao minuto os atrasos, que nessas alturas eram frequentes, por forma a tentar perceber se "dava tempo" para chegar a Campanhã ou mesmo a S. Bento ou se, pelo aperto dos horários, tínhamos de mudar para a linha do Minho em Ermesinde, num rebuliço de bagagens e gentes, com a certeza de ter de ir de pé até Viana, nesses períodos de inevitável enchente dos comboios. É curioso que, até hoje, o nome Ermesinde provoca em mim um "frisson" subliminar, ligado a essa angústia de infância. 

Passávamos quatro ou cinco dias em Viana, com a ceia da Consoada no casarão da minha avó materna, no largo Vasco da Gama, um ambiente que, para a vida, me ficou como sinónimo de férias. Lembro-me bem do presépio que, em cada ano, saía de um armário, do musgo que íamos buscar ao quintal, para colocar sobre um papel forte manchado, e de uma famosa "vaca" que o não era (mas esta é uma "private joke" familiar...). Com os meus primos, jogava pinhões ao rapa e inventávamos algumas maldades inocentes, para encher as noites em que os adultos se entretinham em conversas que só com os anos fomos conseguindo acompanhar. Eram serões muito agradáveis, com todos à volta da minha avó e nós, os mais novos, a traquinar pela imensa casa.

Na tarde de 25 de dezembro, depois da "roupa velha", comida impreterivelmente ao meio dia e meia (a minha avó era de horários sagrados), partíamos para o Porto, comigo já contentado com algumas prendas recebidas. Parte das quais, contudo, para meu silencioso desconsolo, eram sempre pacotes de meias (isso mesmo, meias!), uma oferta regular de duas tias, compradas no Eugénio Pinheiro, ali na Picota. Desse regresso de comboio, tenho para sempre na memória a imagem do meu pai a ler "O Comércio do Porto", nesse dia sempre com as páginas muito ilustradas, com coloridos motivos natalícios. E da minha mãe entretida com a então famosa "Eva" do Natal, uma revista que eu só via surgir nessa altura, com numeração para sorteio de uma moradia. Nunca nos "saiu", diga-se, porque toda a sorte que tivémos deu sempre muito trabalho.

A chegada à estação de S. Bento, com fumarada, apitos e uma barulheira que eu achava o máximo do cosmopolitismo, que depois me lembrava alguns filmes, era um momento desejado. Aguardavam-nos familiares muito próximos, com os quais, após uma ritual passagem para abraços em casa de outros, avançávamos para Vila Real. Ia-se por Santa Catarina, pelo Marquês e por Costa Cabral adiante, passando próximo de Ermesinde (outra vez!), rumo às temíveis curvas do Marão. A elas nos abalançávamos depois de um "reforço" em Amarante, no Zé da Calçada, com aquisição da doçaria na Lai-Lai, ao lado. Passada a Pousada e o ansiado Alto de Espinho, onde a curvaria amainava, as luzes de Vila Real, avistadas de Arrabães, prenunciavam já a outra noite de Natal que aí vinha, desta vez em casa dos meus avós maternos, numa bela e alegre noitada, com outros tios e outros primos. E com novas prendas, claro!

Eram dias felizes. Foram-se os avós, foram-se os pais, foram-se quase todos os tios. Restam os primos, "primos-irmãos", uma rede renovada em gerações, assente num tecido de muito forte amizade. Mesmo assim, este ano, não tenho vontade de passar o Natal em Vila Real.  

sexta-feira, dezembro 21, 2012

Boas Festas...

 ... para todos os leitores deste blogue.

Para os republicanos e para os monárquicos, para os críticos e para os defensores do acordo ortográfico, para os que adoram touradas e para quantos as detestam, para quem é de direita e para quem anda pela esquerda, para os bloguistas "graves" da política e para os que não se levam muito a sério, para os adeptos do Sporting e para os adeptos do resto, para os pessimistas e para os meus comparsas otimistas - para todos, Festas Felizes e os meus votos de que 2013 (13, cruzes!) não venha a ser tão mau como alguns já o pintam.
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Post-scriptum só para vilarealenses. O meu amigo Francisco Agarez insinuou, no Facebook, que a fotografia acima reproduzida não parecia ser de Vila Real. Ora isso é um óbvio absurdo. Mandei-lhe a seguinte mensagem: 

Caro Francisco Agarez: mude de óculos, homem! A foto já tem uns anos, mas então não se vê logo que é a avenida Carvalho Araújo, em Vila Real? O vulto a subir é o Bertelo, saído da Sé, junto ao Pátio das Cantigas. A seguir, dos Correios, espreita o Setas e, logo adiante, passados os Quinchosos, junto ao portão do Seminário, lá está a batina do padre Sarmento. Os carros de praça que passam são do Falei e do Bragança. Na reentrância da pensão do Camposana está bem à vista a figura do Honório (não, não é o Fernando Pessoa!), com o saco de plástico na mão. Na vitrine da Pompeia, nota-se que o Neves está a correr os estores. Logo depois, o padre Henrique (então não vê?) está à porta da Voz de Trás-os-Montes, tendo ao lado o Alvelos, que acaba de fechar o Turismo (lá estão as bilhas de segredo de Bisalhães na montra!). Com algum cuidado, vê-se o dr. Zézé a sair do Clube pela escada para a avenida. E, um pouco acima, o Sarreiro encerra a sua loja e o Zé Araújo fecha a porta da Galeria d'Artes, ao lado do barbeiro. Não sei bem quem é o miúdo que está a sair da porta do edifício da Caixa mas, bem mais ao fundo, à direita, embora um pouco mais difícil de descortinar, podem ver-se garrafões a sair do Alcino para a carrinha do António da Toca da Raposa, bem como a barriga proeminente do Furriel, de chapéu na cabeça, a falar com o Chico Costa, de boina basca. Logo depois, bem visível, lá está a bela varanda dos Mota e Costa, com o João Albardeiro encostado à parede a falar com o Quim Rato. Finalmente, só por distração é que você não viu o Pincha e o Chico Cereja a discutir nas escadas do Tribunal. Caramba, homem, vá ao Frederico ver esses olhos! E já que anda ali pelo Pelourinho, compre-me um bolo-rei. Mas na Gomes velha, está bem?)

Em tempo: e o Francisco Agarez respondeu:


Tem toda a razão, meu caro Francisco, mas que quer? Ainda uso as cangalhas que o pai do Frederico me receitou em 1959 e que aviei no Ferreira oculista. Eu bem andava a estranhar ver tudo desfocado à minha volta e já me tinha convencido de que tinha mesmo de mudar de lentes. Mas quando me preparava para passar das intenções aos actos levei com o OE 2013 e encolhi-me todo. Tenho o azar de ter graduações diferentes nos dois olhos (defeito de fabrico de que já não tenho junto de quem reclamar), o que me impede de comprar os óculos novos numa loja das Three Gorges. E também, para lhe dizer quanto é franco, acho que o melhor é mesmo continuar assim, que o que está para vir não é bonito de se ver e já não tenho pernas para ir à caça de lebres e aparentados. Um Bom Natal para si e para a sua mulher".

Nos comentários, alguns vilarealenses ajudaram ainda a "ler" melhor a fotografia. 

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