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sábado, setembro 01, 2018

Ary e o aborto


Há pouco, vi colocado um “like” na minha página de Facebook por alguém de apelido Torga. E embora todos devamos saber que Miguel Torga era um pseudónimo e que o escritor e médico, na realidade, se chamava Adolfo Correia da Rocha, posso imaginar a quantidade de vezes que a essa pessoa alguém deve ter já perguntado: “é parente do Miguel Torga?”.

E como isto é como as cerejas, lembrei-me de um episódio.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, tive um colega, bastante mais velho, chamado Carlos Ary dos Santos. Foi chefe do Protocolo e embaixador em vários postos. Era uma figura clássica, um homem muito educado, de excelente trato, com quem sempre tive uma magnífica relação, pessoal e profissional. 

Sendo primo do famoso poeta, letrista e declamador José Carlos Ary dos Santos, constava, como mais tarde vim a saber, que não lhe agradava excessivamente que as pessoas lhe lembrassem esse parentesco - quiçá por razões políticas, quiçá por outras.

Um dia dos anos 80, fui em missão de trabalho ao Luxemburgo, onde Ary dos Santos era embaixador, tendo ele oferecido um jantar à delegação. Depois da refeição, à conversa, perguntei-lhe, casualmente: “O senhor embaixador é com certeza parente do ...”. 

Ainda a frase não estava concluída e eu já via a cara do embaixador formar um esgar estranho, misto de desagrado e maçada. “Lá vem o meu primo à conversa”, devia estar ele a pensar. Eu desconhecia então que ele não gostava da associação ao primo, porém pressenti-o naquele preciso instante.

Acontece que a minha pergunta não era sobre o seu primo e poeta José Carlos. E concluí a frase: “... parente do jurista Ary dos Santos, de quem tenho uma obra publicada sobre o aborto”.

Imagino que, entre os circunstantes, alguém devesse ter-se interrogado por que luas eu me tinha interessado em adquirir uma obra jurídica do pai do embaixador, logo sobre um tema tão bizarro como o aborto. Mas nada esclareci, confesso, por embaraço. Vou fazê-lo agora.

Fora uns bons anos antes, na década de 70, na feira do livro de Lisboa, na noite do último dia, antes do fecho definitivo. Eu procurava, nos stands de livros usados, algumas pechinchas, nessa altura vendidas ao desbarato, nas últimas horas da feira. Já ia carregado de sacos quando vi, no topo de uma das bancadas, longe para lhe poder chegar com a mão, um livro de Ary dos Santos, com o título “O crime de aborto”. Por baixo, trazia a menção “advogado”. Acaso seria o poeta advogado? Eu sabia lá! A edição parecia antiga, o preço eram, creio, 15 tostões. Obra “de juventude”? Nunca tinha ouvido falar. Era um título forte. Seria poesia? Seria um manifesto de polémica? Pelo sim pelo não, disse ao livreiro, apontando: ”ponha esse aí também!”. O volume veio assim na molhada que levava dessa bancada dos “quinze tostões”, num saco. Só chegado a casa é que vi o “barrete” que enfiara. O livro era mesmo uma tese ultra-conservadora sobre o aborto, de Alfredo Ary dos Santos. De 1935...

Voltemos à sala do Luxemburgo. O sorriso aliviado de Carlos Ary dos Santos, ao ouvir o termo da minha pergunta, acompanhou uma detalhada explicação de que se tratava, de facto, do seu pai, de cuja carreira e obra nos falou, com muito orgulho. 

Carlos Ary dos Santos continuou a tratar-me lindamente, todas as vezes que nos voltámos a cruzar, no futuro. Se calhar, desde essa data, até um pouco melhor do que antes...

segunda-feira, agosto 27, 2018

Vera Franco Nogueira



Li que morreu Vera Franco Nogueira, mulher do embaixador Alberto Franco Nogueira - diplomata, ministro dos Negócios Estrangeiros e biógrafo de Salazar.

Há um episódio, de dimensão político-diplomática, envolvendo Vera Franco Nogueira, que se contava nos corredores das Necessidades. Nunca pude confirmar se era verdadeiro, pelo que a relato aqui com todas as reticências.

Um dia, na sua maratona pelo mundo para ganhar apoios para a política colonial do Estado Novo, Franco Nogueira, acompanhado da sua mulher, ter-se-á deslocado à África do Sul. 

O regime do “apartheid” vivia os seus anos mais radicais, com o privilégio aos brancos a prevalecer em todos os setores da sociedade. A ideia que todos temos é a de que essa prática discriminatória era feita contra os negros. Mas esquecemo-nos de que outras raças eram também vítimas desse preconceito.

Chegado o casal ministerial ao hotel onde iria ficar, terá havido um incidente. O hotel era “whites only” e não terão querido deixar alojar Vera Franco Nogueira, por ser asiática. Não sei como é que o incidente, a ser verdadeiro, terá sido superado. Alguém ouviu falar desta (repito: verdadeira ou falsa) história?

quinta-feira, agosto 23, 2018

O pavão do embaixador

Aquele embaixador era conhecido por ser uma figura um tanto bizarra. Isso também se refletia na decoração, bem eclética, que espalhava por toda a sua residência oficial. A avaliar pela diversidade das peças, fruto de andanças por vários mundos, o nosso representante diplomático era um colecionador de recordações, algumas das quais de gosto muito mais do que discutível. O facto de ser solteiro, de não ter a seu lado uma sensibilidade feminina que o ajudasse a equilibrar o conjunto, resultava em óbvias e não felizes consequências no aspeto decorativo das suas salas.

Se havia um ponto dessa mesma decoração que se salientava como mais chocante esse era, sem dúvida, o colorido pavão, de "papier maché", adquirido no Hawai, que ocupava um lugar central no salão de entrada, num pedestal colocado sobre um horrível tapete retangular, de cor bem forte e sentido estético bem fraco.

Um dia, o jovem diplomata que o acompanhava no posto, um tanto a medo, atreveu-se a dizer ao embaixador que, porventura, a colocação do pavão talvez fosse demasiado impositiva para o equilíbrio estético do salão. E adiantou, como sugestão, que podia ser interessante situá-lo num canto da sala, num lugar mais discreto.

A resposta do embaixador desarmou-o: "Ó homem, você não percebe a razão por que tenho aqui o pavão? Eu sei que as pessoas podem sentir-se um pouco surpreendidas com esta peça, mas ela tem um função muito importante. Quando tenho um almoço ou um jantar, à medida que os convidados chegam, é sempre preciso encontrar um tópico para iniciar a conversa. Ora nada melhor do que este pavão para servir como "starting point for talk". Nem você imagina a quantidade de pessoas que, olhando para o pavão, começam logo a inquirir onde o comprei, de que é feito, etc. Ora isto é precioso: garantir um tema de arranque de uma conversa é muito importante, o que evita logo falar do clima, do tráfego ou outros temas artificiais de circunstância. E, do pavão, podemos logo passar às questões de arte, de geografia ou dos costumes. O pavão dá-me imenso jeito!".

O diplomata ficou rendido ao argumento e mais valorou a "tática" do seu chefe quando este adiantou, com subtil e auto-flagelatória ironia: "E fique você a saber que não me preocupo nada pelo facto de algumas pessoas poderem, no seu regresso a Lisboa, falar do "pavão" do nosso embaixador..."

quarta-feira, agosto 22, 2018

História da ONU


Desapareceu há dias Kofi Annan, secretário-geral das Nações Unidas. 

Em 2001 e 2002, fui representante permanente de Portugal junto da organização. Nessa qualidade, fui por ele recebido, nos primeiros dias de março de 2001, em Nova Iorque, para a conversa ritual que os novos embaixadores têm com o secretário-geral. Falámos então de Timor-Leste. Os tempos mais complexos da questão, no tocante à ONU, já tinham passado, mas Annan criara com Portugal, por essa razão, uma forte relação de cumplicidade, desde logo com o meu antecessor no cargo, António Monteiro. Nesse tempo em que eu chegava a Nova Iorque, o grande problema que se nos colocava era convencer o Conselho de Segurança a manter em Timor um contingente militar de operações de paz que garantisse segurança na transição para a independência, que teria lugar em 2002. Isso viria a ser conseguido.

De António Monteiro eu tinha “herdado”, além de uma excelente equipa, a vice-presidência do Comité Económico e Social (Ecosoc). Embora o lugar pertencesse a Portugal, o novo embaixador tinha de ser eleito. E assim aconteceu, escassos dias após a minha chegada, o que levou Annan a gracejar sobre esse meu rápido “sucesso”, comigo a garantir-lhe não ter nisso a menor “culpa”...

Alguns meses mais tarde, no seio da missão portuguesa junto da ONU, surgiu a ideia de que Portugal candidatasse o meu nome a presidente da Segunda Comissão - assuntos económicos e financeiros - da Assembleia Geral, a maior e mais importante de todas. Testámos as águas e decidi aprovar a sugestão. Feitos os necessários contactos e a eleição veio a consumar-se. Era um lugar interessante, embora muito trabalhoso, mas com ganhos de visibilidade e garantia de alguma influência. À época, Portugal apenas por uma vez, desde que integrara a ONU, em 1955, ocupara uma presidência de uma Comissão da AG, através do embaixador Leonardo Matias.

Fiquei assim, muito escassos meses depois de chegado a Nova Iorque, titular de dois cargos eletivos no seio da estrutura das Nações Unidas. Sublinho que o mérito pessoal deste tipo de eleições é sempre muito relativo. As pessoas podem contar, mas a importância da “máquina” criada em nosso torno pela equipa de colaboradores é essencial. E o país é muito importante: Portugal goza de um “bom nome” no mundo multilateral.

Recordo ainda que, por essa altura, vivíamos a tentativa de conseguir a eleição da professora Paula Escarameia para a Comissão de Direito Internacional da ONU, órgão que nunca tínhamos integrado e para o qual havia uma fortíssima concorrência. As funções que desempenhava no Ecosoc e na 2ª Comissão acabaram por me ajudar na bem mais de uma centena de contactos que então efetuei, no lóbi em favor de Paula Escarameia, cujo prestígio pessoal no domínio em que concorria foi, naturalmente, o trunfo determinante para essa vitória. Ganhámos essa difícil eleição, para surpresa de muitos, com uma forte e saborosa votação. (A tal magnífica “máquina” eleitoral que Portugal tinha na sua missão na ONU iria permitir-nos, logo no ano seguinte, algumas outras vitórias).

Um dia, a secretária-geral adjunta da ONU, a canadiana Louise Fréchette, chamou-me ao seu gabinete para me informar que Kofi Annan tinha pensado no meu nome para integrar o painel de seleção de projetos do UNFIP. Fréchette chefiava o “advisory board” do UNFIP. Segundo me disse, ela e o SG tinham considerado que as duas funções que eu já desempenhava me qualificavam especialmente para membro dessa estrutura.

O que era o UNFIP? Lembro-me que, à época, eu próprio tinha escassa informação sobre esse órgão - o “United Nations Fund for International Partnerships” (Fundo das Nações Unidas para Parcerias Internacionais). O UNFIP fora criado, em 1998, em particular para “gastar” os mil milhões de dólares que o presidente da CNN, Ted Turner, oferecera às Nações Unidas, para fazer face à sua escassez de recursos no combate ao subdesenvolvimento. Fazer parte desse painel era a garantia de passar a ser solicitado por dezenas de colegas para apoiar projetos nos seus respetivos países, o que conjunturalmente conferia ao embaixador português na ONU um papel bem interessante, a somar às funções já desempenhadas.

Kofi Annan pediu para me ver, poucos dias depois. Estava acompanhado de Mark Maloch-Brown, então diretor-geral do PNUD, que integrava o painel de que eu iria fazer parte. Explicou-me uma nova filosofia que pretendia atribuir ao UNFIP. Passei a colaborar, a partir daí, num trabalho muito interessante, que foi desenvolvido em paralelo às funções de representante permanente. Recordo bem uma figura do “board” da UNFIP com que criei uma particular relação, Ruth Cardoso, uma intelectual de mérito, mulher do então presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso.

Cerca de um ano depois, o novo governo português determinou que eu fosse exercer funções em Viena, onde fui colocado na OSCE, no ano em que Portugal presidiu à organização. 

Poucas semanas após a minha chegada à Áustria, fui surpreendido com a chegada de uma convocatória para uma reunião da UNFIP, em Nova Iorque. Eram-me solicitados os dados para a emissão do bilhete e ajudas de custo. Eu não tinha reparado, mas a minha nomeação para o painel da UNFIP era por três anos, a título pessoal e, infelizmente, não era transmissível ao meu sucessor, Gonçalo Santa-Clara Gomes, como o fora a vice-presidência da Assembleia Geral da ONU, cuja eleição obtivera para Portugal, pouco antes de abandonar Nova Iorque.

Informei por escrito Kofi Annan de que não considerava adequado manter-me em funções no UNFIP, depois de ter deixado o lugar em Nova Iorque, não obstante Portugal vir assim a perder esse lugar. Respondeu-me com uma carta gentilíssima, em que me agradeceu o trabalho que eu desenvolvera ao longo dos vários meses em que com ele colaborara. Essa carta complementava a empática e anormalmente longa conversa que quisera ter comigo, antes da minha saída de Nova Iorque. 

Só voltei a encontrar Kofi Annan, por uma última vez, em Lisboa, anos mais tarde, num jantar no Palácio da Ajuda, a convite do presidente Jorge Sampaio. O sorriso era o mesmo, a atenção para comigo também não variara. Não esqueci nunca essas suas atitudes.

sexta-feira, julho 20, 2018

O Zé Bouza




Há dias, três embaixadores conversavam. Era uma cerimónia de entrega de uma condecoração. Comentei, a propósito, que, na minha vida diplomática, tive recorrentes dúvidas sobre as regras a seguir no tocante ao “lugar” e à ordem de colocação no peito dessas insígnias, quando as regras protocolares me obrigavam a usá-las. 

Sei que esta liturgia pode parecer ridícula para quem não é do “métier”, mas a verdade é que, se se vissem forçados profissionalmente a usar smoking, fraque ou casaca, logo perceberiam o embaraço. Qual a “hierarquia” das “placas” (aqueles chapões metálicos que cosemos à casaca)? As fitas das grã-cruzes ficam por fora ou por dentro, quando estão presentes chefes de Estado? E coisas assim...

Revelei então que, em algumas dessas ocasiões, já enfarpelado para as cerimónias, em lugar de recorrer “ao Helder” ou “ao Calvet” (autores de dois manuais diplomáticos que consagram esse bom-senso educado e consuetudinário que são as regras do protocolo), eu sempre telefonava ao Zé Bouza. Houve logo um coro: os dois outros colegas faziam exatamente o mesmo que eu!

Para quem não sabe, o Zé Bouza é o embaixador Jose Bouza Serrano, um colega diplomata que “sabe tudo” sobre protocolo. Além de ter chefiado o Serviço do Protocolo do Estado, o Zé escreveu uma “bíblia” sobre o assunto, num estilo pessoal que retirou muito do caráter académico da matéria, recheando o texto de pormenores da sua própria vida.

O José Bouza Serrano é um monárquico que serviu, com lealdade, competência e pundonor, esta República que lhe saiu em rifa histórica, desde um dia de outubro de 1910. Não sei se ele ainda acredita na “restauração” da coroa, mas tem um prazer imenso, nomeadamente nas redes sociais, em destacar as figuras que o Almanaque de Gotha, esse guia Michelin da aristocracia, regularmente recolhe, para memória dos fiéis, as “linhagens”, os nascimentos e os matrimónios, quiçá as separações e outros movimentos de sobressalto familiar, tal como as saídas eternas da cena da vida. Eu, republicano empedernido, jacobino e (para ele) cúmplice objetivo dos “mata-frades”, brinco sempre muito com estas coreografias do jet-set principesco e ofícios correlativos. Mas ele nunca leva a mal.

Esse meu colega deu-me, um dia, uma prova definitiva de grande caráter. Ele estava, na altura, colocado num determinado posto. Sabia-se, mas não pela sua boca, que a relação que tinha com o respetivo embaixador não era das melhores - e, conhecendo o bom feitio do Zé, a razão dos dissídios devia ser seguramente posta a débito do seu ocasional chefe. Em Lisboa, por alturas do Natal e Ano Novo, os colegas costumam reunir-se, mas o Zé, nesse ano, fez-se discreto. Nenhum jantar contou com ele, fez gazeta aos copos do fim de tarde. Tempos depois, perguntei-lhe porquê. A resposta foi um exemplo conjugado de profissionalismo e de educação, em suma, da gentileza de um grande senhor: “Não apareci porque tinha a certeza de que me iam fazer perguntas sobre o ambiente no posto. E como não queria dizer mal do meu embaixador, mas também não tinha vontade de mentir, achei que era melhor abster-me de ter essas conversas”.

Nas Necessidades, nos dias de hoje, o Zé continua a trabalhar para uma carreira a que sempre deu muito de si, às vezes com momentos em que, literalmente, “fez das tripas coração”, em tempos complexos que já lá vão. Mas onde, com todo o merecimento, também se soube divertir bastante, como é da lógica dos que sabem viver bem a vida. É uma jóia de pessoa, com um sorriso permanente, uma gargalhada fácil e sã, em especial quando ambos partilhamos alguns episódios caricatos de que fomos testemunhas bem humoradas.

Por que é que falo dele aqui hoje? Ora essa! Porque é o dia do seu aniversário. Um forte a muito amigo abraço de parabéns, querido Zé!

sábado, julho 14, 2018

Croácia


A Croácia disputa amanhã com a França a final do Mundial de futebol. Nos últimos dias tenho observado que muitos dos apoiantes da França acabam por sê-lo apenas como forma de se oporem politicamente à Croácia. A sua história durante a Segunda Guerra mundial, bem como o comportamento do novo país durante o conflito jugoslavo, criaram fortes anti-corpos à Croácia em vários setores “com memória”. E o futebol não escapa a estas polarizações.

Vou recordar uma historieta, que talvez venha a propósito.

O escritor Álvaro Guerra foi um dos escassos embaixadores oriundos do mundo fora da carreira diplomática por quem o Ministério dos Negócios Estrangeiros sempre manifestou genuíno respeito. A história que hoje relato passou-se em 1996, ao tempo em que ele era nosso representante junto do Conselho da Europa (CdE).

Numa tarde em Estrasburgo, senti o Álvaro um pouco embaraçado, durante a conversa que comigo teve, no caminho entre o aeroporto e hotel. Eu representaria Portugal, no dia seguinte, no Comité de Ministros do CdE, nesse que era o meu primeiro ano no governo. Notei que estava mais lacónico do que era costume e, uma hora depois, ao deixar-me à porta da residência do secretário-geral da organização, onde os membros dos governos tinham um ritual jantar, surpreendeu-me com a frase: "Logo à noite, espero-o no hotel. Precisava de falar consigo".

Fiquei intrigado. Eu tinha uma excelente relação pessoal com Álvaro Guerra, uma figura da intelectualidade portuguesa que conheci logo após o 25 de abril, cujo humor e simpatia, depois complementados pela vivacidade inteligente da Helena, sua mulher, transformavam as minhas idas a Estrasburgo em belos momentos de amena cavaqueira, onde a política portuguesa era sempre percorrida com apurada ironia. E grande cumplicidade. Que quereria o Álvaro? Um novo posto? Ele estava há pouco tempo no CdE, pelo que talvez me quisesse sensibilizar para algum problema de pessoal. Logo se veria.

Os jantares em casa do secretário-geral do CdE, que tinham lugar todos os seis meses, eram sempre precedidos de uma conversa "au coin du feu", com um convidado. Nessa noite, entrei na sala lado o lado com o ministro croata dos Negócios Estrangeiros, Mate Granic, e, por um acaso, sentámo-nos um em frente ao outro, nos dois melhores sofás individuais da sala.

(Nos cinco anos seguintes, eu e Granic, quase sem exceção, duas vezes por ano, tornar-nos-íamos "proprietários" desse lugares, que passaram a ser "cativos", na invariável coreografia com que o SG Daniel Tarschys e, mais tarde, Walter Schwimmer dispunham a sala. Caprichávamos em não perder esses "nossos" sofás, cujo conforto nos permitia resistir melhor às "secas" que alguns convidados nos pregavam. E gozávamos com isso.)

Eu conhecera Granic, meses antes, em Zagreb. No quadro de um discreto (diria mesmo, secreto) périplo que havia feito à volta da Europa, acordara com ele uma troca de apoios: a Croácia votaria favoravelmente a nossa candidatura a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e nós dar-lhe-íamos o nosso voto para a sua pretensão de entrar para o CdE.

Diga-se que esta última candidatura estava longe de ser consensual: o regime croata mantinha ainda falhas no tocante à observância de alguns princípios da ordem jurídica protegida pelo CdE e, por essa razão, alguns Estados membros mantinham reservas quanto a esta adesão. Por "realpolitik" e particular interesse nacional, mas igualmente pelo facto de considerarmos que uma integração da Croácia no CdE era a melhor forma de promover a observância de tais obrigações, o governo português havia optado por dar o seu apoio à pretensão croata, contrariando abertamente a posição que era defendida pela missão portuguesa em Estrasburgo, chefiada por Álvaro Guerra. No dia seguinte a esse jantar, a anteceder a reunião do Comité de Ministros, teria lugar a "foto de família", com os membros do governo e os embaixadores, que consagraria a entrada da Croácia na organização.

Regressei ao hotel e, no "hall", estava já o Álvaro Guerra. Sentámo-nos para uma bebida no bar e ele revelou-me a razão pela qual queria falar comigo: vinha pedir-me o favor de o dispensar de estar presente na cerimónia do dia seguinte. Álvaro Guerra fora embaixador em Belgrado e, tal como a esmagadora maioria dos colegas portugueses que haviam tido a experiência de servir na capital jugoslava (hoje da Sérvia), Belgrado, Álvaro "went native" e assumia uma posição fortemente pró-sérvia, com muito escassa simpatia (e isto é um "understatement"...) pela Croácia.

Era uma posição política, talvez pouco diplomática, mas as questões limites de consciência são respeitáveis, desde que assumidas de modo correto e não conflitual com os interesses do país. Não vi, assim, nenhum inconveniente em isentá-lo do exercício, que constatei que lhe seria muito penoso. No dia seguinte, ele assistiu, de longe, à fotografia comemorativa da adesão da Croácia, que há dias descobri na minha papelada (com muito menos cabelos brancos, diga-se).

Logo de seguida, sentámo-nos na sala do Conselho de Ministros e o Álvaro perguntou-me: "Quem foi a "alma danada" que, em Lisboa, teve a infeliz ideia de decidir o nosso voto em favor da Croácia?". Com um sorriso irónico, esclareci-o que fora precisamente eu o autor do "deal" com Granic, feito em segredo em Zagreb, escassos meses antes. Álvaro Guerra estava estarrecido! "Você?!". Expliquei-lhe a negociação e a racionalidade subjacente à decisão tomada, mas tenho a certeza que não o convenci. O Álvaro não se zangou comigo, como também o não fazia quando eu combatia, com ardor e ironia, a sua "aficción" tauromáquica.

O Álvaro morreu em 2002. Se fosse vivo, tenho a certeza de que amanhã estaria a gritar: “Allez les bleus!”.

quinta-feira, maio 25, 2017

As malas e os diplomatas

O embaixador de que falei na historieta anterior, Cabrita Matias, era um "sábio" prático, daquelas pessoas que faz doutrina própria com base nas experiências e as transforma em indiscutíveis verdades universais.
Um dia, disse-lhe que, ido de Oslo, ia passar um fim-de-semana a Estocolmo. Aconselhou: "Escolha um hotel longe da estação!" Pensei logo: conhece a área, o "red light district" dever ser por perto. Mas, por acaso, era exatamente por ali que eu ia ficar! Creio que era um Sheraton, se a memória não me trai. E disse-lho.
"Ó homem, isso é uma imensa asneira", decretou. Mas porquê? A zona é má? "Nada disso! A regra é universal" (não fazia a coisa por menos). "Aprendi isso em França, com os famigerados Hotel de La Gare. Quer saber porquê?" Esse era o meu maior desejo, nesse momento.
"É muito simples, meu caro. Um hotel junto de uma estação tem dois problemas: é sempre demasiado distante para nós carregarmos as malas e demasiado próximo para chamar um táxi! É sempre uma tragédia. E para si é pior". Porquê? "Porque é casado" (ele era solteiro). "E as mulheres não sabem "to travel light"!"
Ele tinha toda a razão (em tudo o que tinha dito...) e eu passei a seguir a sua recomendação...
(... até ao dia em que foram inventadas as malas com rodas! Como é que é possível que tenham passado milénios entre a invenção da roda e esse "ovo de Colombo" que foi colocá-las nas malas? Quantas "Tauro" eu carreguei pelas ruas da vida!)

quarta-feira, maio 24, 2017

Olha a mala!

Sentado numa simpática esplanada de Aveiro, com o pôr-do-sol a aproximar-se, neste Verão "avant la lettre", leio na net a notícia da pesada condenação de Oliveira e Costa.
Do outro lado, fica a Pousada da Ria. Há muitos anos, nós e um casal amigo fomos lá ficar uma noite. Estava um funcionário na receção, a tomar conta dos nossos dados, que, amavelmente, nos esclareceu: "Não se preocupem com as malas! O meu colega vem já buscá-las!".
E, de facto, nem um minuto era volvido quando ouvi o meu amigo, atrás de mim, notar, para alguém que chegava: "Pode levar já estas. Há ainda duas sacas que eu vou buscar ao carro". E saiu, apressado.
Notei que qualquer coisa de estranho sucedia: as malas, mesmo ao meu lado, continuavam no lugar.
Olhei para trás e deparei com o olhar impassível de Oliveira e Costa, que o meu amigo, pouco dado às políticas, não identificara como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, um "ajudante" de Cavaco Silva.
"Fiz de conta" que não tinha ouvido a cena e só mais tarde expliquei ao meu amigo quem era o pretendido "carregador" de malas.
Estes equívocos podem ocorrer.
Em 1980, na Noruega, tinha lugar uma reunião da Internacional Socialista, a que foi Mário Soares, então líder da oposição, que vinha acompanhado por Maria Barroso e Rui Mateus.
No hall do Hotel SAS a confusão era grande. Os trabalhistas noruegueses tinham uma organização pouco eficaz, ou nós é que estávamos já fartos de esperar. O embaixador português, Cabrita Matias, estava em Oslo há poucos dias e logo lhe caíra "na sopa" um peso pesado como Soares, que dava mostras, compreensíveis, de querer ir para o quarto logo que possível. O embaixador estava "elétrico", ao ver a impaciência de Soares. Eu procurara já ajuda, sem grande sucesso.
Surgiu então, perto de nós, uma senhora com ar e atividade que indiciavam pertencer à organização, com a identificação ao pescoço.
Vi o embaixador avançar para ela e, ainda à distância, dizer-lhe, no seu impecável inglês, qualquer coisa como isto: "Ó menina, pode tratar destas malas, "faxavor"?" Eu dei um salto, puxando-lhe pelo braço, evitando que ele perseguisse a senhora, que parecera não ter notado o pedido.
Apenas lhe pretendia dizer que a "menina" era Gro Harlem Brundtland, a futura líder dos trabalhistas noruegueses, que ele ainda não tivera ocasião de conhecer. Dois meses depois, a "menina" era primeira-ministra...
Isto de malas tem muito que se lhe diga!
(E o sol está a pôr-se, aqui em Aveiro!)

sábado, maio 20, 2017

Agora Marcelo Caetano

Como aqui assinalei, morreu, há dias, no Rio de Janeiro, António Gomes da Costa, um dos mais destacados líderes da Comunidade portuguesa no Brasil. 

Foi uma figura cuja ação sempre admirei, pela sua empenhada dedicação à promoção de Portugal no Brasil e ao aprofundamento das relações luso-brasileiras. Era um homem profundamente conservador, apreciador confesso das virtualidades do regime derrubado em 1974, crítico regular no novo regime então surgido.

Isso nunca o impediu de manter um relacionamento impecável com os representantes do Estado, em democracia, como foi o meu caso, entre 2005 e 2009.

Num depoimento que hoje enviei para o JL - Jornal de Letras, contei um episódio passado no primeiro encontro que tive com António Gomes da Costa, em inícios de 2005. 

Perguntei-lhe então sobre o estado de conservação da sepultura do professor Marcelo Caetano. Respondeu-me que tinha indicações de que o espaço estava bem cuidado, por pessoas da nossa comunidade. Notei, contudo, a sua surpresa, pelo facto de eu ter abordado o assunto. Expliquei-lhe – e fazia-o com total sinceridade – que era minha preocupação, como embaixador, garantir, durante o tempo que durasse a minha missão no Brasil, que o local onde estavam os restos mortais daquele antigo chefe do governo estivesse preservado com a dignidade necessária, assegurando que a embaixada tinha toda a disponibilidade para auxiliar em tudo quanto, nesse domínio, viesse a ser necessário fazer. 

António Gomes da Costa terá percebido nesse instante que a minha atitude relevava de uma leitura de Estado, muito para além das trincheiras políticas muito diversas que ocupávamos. E julgo que isso contribuiu para que, a partir daí, nos tivéssemos relacionado sempre sem o menor problema. Continuando nós, bem entendido, cada um "na sua", em matéria política.


É que uma coisa que todo o diplomata deve ter sempre bem presente, quando está em serviço no estrangeiro, é que, estando embora sob as ordens conjunturais do governo de turno, ele representa o Estado e é depositário de toda a História que o país carrega consigo. Toda, mesmo.

quinta-feira, maio 18, 2017

Photo opportunity

Um dia, num aeroporto do Brasil, cruzei-me com uma figura ligada a um derminado setor da Justiça daquele país, com quem me tinha encontrado em diversas ocasiões oficiais e com a qual mantinha uma relação cordial. Em tom casual, perguntou-se se eu conhecia uma determinada pessoa, um cidadão brasileiro. O nome nada me dizia. A figura da Justiça sorriu e disse-me que essa pessoa estava presa e que, no seu processo, constava uma fotografia tirada comigo.

Já não sei como, cheguei à conclusão de que coincidira com essa pessoa, mais de um ano antes, num jantar com uma vintena de pessoas, em casa de uma amiga comum. Puxando mais pela memória, recordei-me que, a certa altura, essa pessoa quis tirar uma fotografia com o embaixador de Portugal, provavelmente para recordação. Não tinha nenhum motivo para recusar fazê-lo e, verdadeiramente, esqueci tudo no instante seguinte.

A personagem ligada à Justiça brasileira disse-me que o assunto não tinha a menor importância, mas deu-me um conselho: quando alguém que eu não conhecesse me pedisse para tirar uma fotografia comigo, deveria tomar a iniciativa de pedir a mais alguém, que estivesse perto, para se juntar ao retrato. Isso evitaria dar a ideia de uma excessiva intimidade com o parceiro desconhecido registado na imagem. Tomei boa nota da técnica, embora depois tivesse aprendido que há outra, também eficaz, que é ter fotografias, mesmo a dois, com quase toda a gente, como faz o nosso presidente da República...

Lembrei-me disso há pouco, ao receber tristes notícias políticas do Brasil. É que, se olhar os meus arquivos fotográficos, não são poucas as fotografias que tenho com figuras políticas, brasileiras e não só, que entraram em desgraça, algumas delas presas, outras, aparentemente, com fortes probabilidades de o virem a ser.

sexta-feira, maio 12, 2017

As luzinhas do presidente


São contraditórias as notícias que chegam de Angola, sobre o real estado de saúde do presidente José Eduardo dos Santos. Num país cujo quotidiano, desde há décadas, está marcado por aquele que é o mais resiliente líder de África, é normal que alguma ansiedade atravesse quantos, mais cedo ou mais tarde, para o seu bem ou para o seu mal, vão ter de encarar o futuro sem ele.

Lembrei-me há pouco dos tempos em que vivi em Luanda, com Angola em guerra civil, no início dos anos 80, a cidade de certo modo sitiada, com fortes precauções de segurança e recolher obrigatório durante a noite.

Eu tinha um cozinheiro chamado Alberto, uma figura curiosa que herdara do meu antecessor na embaixada. Nunca lhe consegui extrair uma palavra de simpatia para com o MPLA e o seu regime, apenas algumas ironias crípticas sobre figuras políticas mais em voga. No fundo, sempre desconfiei que fosse simpatizante da Unita.

Um dia, fui com o Alberto buscar já não sei o quê à Corimba, no caminho para o Futungo de Belas, o complexo onde então vivia o presidente. A certo passo, ao longe, em nossa direção, vimos surgir um grande movimento de viaturas. A Luanda dessa época era muito diferente da de hoje, sem o tráfego rodoviário infernal que é o seu atual quotidiano. Um reboliço desse género era, à época, muito pouco comum.

Vi então Alberto, em geral seráfico, ficar muito agitado e dizer: "Doutor, cuidado!, são as luzinhas do presidente!" Eu estava há poucos meses em Luanda, pelo que demorei uns instantes a perceber o que ele queria dizer. O Alberto referia-se, percebi então, às dezenas de luzes, bem visíveis naquele fim de tarde com o sol a pôr-se, que se destacavam das motos dos batedores e dos carros da segurança, que precediam o cortejo de viaturas negras onde, com plausível certeza, viajava José Eduardo dos Santos.

A aproximação das "luzinhas do presidente" significava, muito simplesmente, a necessidade de qualquer viatura com que aquele aparato se cruzasse ter de encostar à berma e, mais do que isso, que o condutor colocasse as mãos sobre o volante, na posição "dez-e-dez", por forma a não criar a mais leve dúvida sobre a sua inocuidade para a segurança do líder do país. Vim a saber, mais tarde, que um cidadão português, menos atento a esta indispensável coreografia, teria sido morto, tempos antes, com disparos de uma das viaturas da segurança do cortejo.

Por que é que me lembrei disto? Porque estou numa área de serviço da autoestrada, perto da base de Monte Real, onde o papa aterrará daqui a pouco, e, embora em faixas diferentes, vislumbrei já algumas viaturas oficiais, precedidas de batedores, cheias de "luzinhas". 

E senti que é muito bom viver num país onde, felizmente, não somos obrigados a ter calafrios sempre que nos cruzamos com as "luzinhas do presidente".

quinta-feira, maio 04, 2017

O adeus de Philip


Foi hoje anunciado que o príncipe Philip, duqie de Edimburgo, vai deixar de surgir em cerimónias públicas. A sua fragilidade física justificará que deixemos de o ver ao lado da raínha Isabel II. Enfim, ao lado não, porque há uma arte que ninguém como ele domina: estar sempre dois passos atrás da soberana, garantindo, não obstante, um lugar com suficiente proeminência na cena, a que a sua estatura também ajudava. Do príncipe, a História não reteve grandes tiradas e, bem pelo contrário, fixou mesmo algumas "gaffes". Não deve ser fácil ser príncipe consorte, mas, jogando o trocadilho, ele tem, no entanto, a sorte de sê-lo de uma raínha que é uma excelente profissional na função que exerce.

Há já uns bons anos, na Noruega, tive uma simpática amiga, diplomata equatoriana, de seu nome Marta Dueñas. Era casada com um norueguês "muito norueguês", daqueles que construíam (não sei se ainda constroem) as próprias casas familiares de madeira, ao longo de vários meses ou mesmo anos. Chamava-se Erik e recordo-me que tinha um humor já algo "sulista", por virtude do convívio com os colegas da mulher, como era o nosso caso.

Um dia, o Erik contou-me uma troca de palavras que teve com o príncipe Philip, durante uma visita de Estado da soberana britânica à Noruega. Como era de regra, após o jantar oficial, o protocolo ia convidando os diplomatas, por uma ordem vagamente próxima da respetiva antiguidade, para se aproximarem do rei norueguês - à época Olav V - e da sua convidada. Numa linha mais atrás, o príncipe Philip exibia o seu sorriso e deixava cair alguns comentários.

Quando a diplomata equatoriana e o seu marido foram apresentados aos reis, o duque de Edimburgo acercou-se de Erik e, num aparte só ouvido pelo dois, comentou: "você e eu temos uma coisa em comum: são as nossas mulheres que trabalham!" Erik não sabia o que dizer: ele próprio tinha uma exigente profissão e vir a ser toda a vida "consorte" da mulher era a última coisa que lhe passava pela cabeça. Mas não quis desiludir o príncipe e deixou escapar: "De facto, é um privilégio estar na nossa posição..." Não contava com a reação de Philip: "Privilégio?! Isto às vezes é muito aborrecido, pode crer! Para si não é?". O norueguês, que detestava cocktails e jantares oficiais, a que só assistia por virtude da profissão da mulher, achou que tinha ganho espaço para uma graça: "Ao menos, bebemos uns copos!" Ao que Philip, sorrindo, respondeu: "Pois hoje, a mim, de nada me valeu ainda ser marido da raínha! Ainda não consegui que me servissem um scotch..."   

quinta-feira, abril 27, 2017

Os dias de Orbán


Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio.

Horas antes, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán.

Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci mais esse olhar.

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política.

Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Depois da conversa com Orbán, e de ter ouvido outros interlocutores húngaros, percebemos bem o que significava esse recado.

A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia. Göncz deixou a presidência há muito e morreu em 2015. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro e o que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa. Orbán, como ainda hoje se observou no Parlamento Europeu, continua a fazer caminhar o seu país para uma "democratura".

Felizmente para ele, tem assessores, até portugueses, à altura do seu prestígio.

terça-feira, abril 11, 2017

A zurrapa


Ontem, durante uma palestra que proferi no Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, referi um episódio diplomático ocorrido há duas décadas.
Por essa altura, defrontavam-nos com o facto da África do Sul produzir uma espécie de "vinho do Porto", que comercializava para os países vizinhos. No quadro da União Europeia, Portugal procurava proteger aquela sua denominação de origem e fazer pressão para que os sul-africanos descontinuassem a designação de "Porto" associada a esse vinho, conformando-se às regras internacionais. Por tática negocial, a Comissão Europeia propunha um "phasing-out" progressivo, com um certo calendário. Eu defendia uma aceleração desse periodo, que entendia mais consonante com os interesses dos nossos produtores e exportadores. Um dia, a questão subiu ao Conselho de Assuntos Gerais, como então se chamava a reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Portugal estava nela representada por Jaime Gama, acompanhado por mim. Expliquei ao ministro a política que, sobre o assunto, tinha vindo a seguir nos meses anteriores, no tratamento do assunto.
Sem pôr em causa essa orientação, mas talvez pela importância conjuntural de algum outro dossiê bilateral nosso com a RAS que eu desconhecia, observei que Jaime Gama se mostrava algo contemporizador face à posição sul-africana de calendário, com o qual, aliás, a Comissão concordava e que eu teimava em contestar.
Foi então que lhe ouvi este singular argumento: "Não é de todo mau que os sul-africanos e os seus vizinhos se habituem a beber essa "zurrapa", como você lhe chama. É que isso indu-los, a preços baixos, ao consumo de vinhos generosos, o que não deixa de ser um bom princípio. Assim, quando um dia vierem a ter o ensejo de provar o verdadeiro Vinho do Porto, eles logo perceberão a imensa diferença de qualidade com aquilo a que se tinham habituado, aceitando talvez pagar o verdadeiro Porto a outro preço...".
não me recordo como o assunto terminou, nem sei do eventual sucesso da pressão comunitária no quadro da Organização Mundial do Comércio, mas o argumento de Gama não deixava de ter algum sentido. E graça.

sábado, abril 08, 2017

O trono e os perdigões


A Monarquia acabou em Portugal em 5 de outubro de 1910, com a implantação da República - a segunda surgida na Europa, depois da França, descontado o caso especial da Suíça.

O último rei de Portugal, o jovem dom Manuel, acompanhado da sua mãe Amélia, exilou-se então perto de Londres, onde viria a morrer em 1932.

Não deixou descendentes, tendo, ainda em vida, concordado em que, para o caso de uma hipotética restauração do regime, fosse retomado o ramo familiar do rei dom Miguel. Este, curiosamente, havia sido derrotado no terreno das armas pelo ascendente direto de dom Manuel, dom Pedro IV, sob acusação de usurpador do trono.

Depois de terem tentado sem sucesso, durante a primeira República, derrubar militarmente o novo regime, com o natural apoio do soberano exilado, os monárquicos portugueses colocaram todas as suas esperanças na possibilidade da Ditadura Militar, implantada em 1926, poder vir a abrir caminho à ansiada retoma do sistema.

Durante o Estado Novo, Salazar, cujas simpatias pela Monarquia eram evidentes, jogou com o apoio dos esperançados monárquicos para consolidar o seu poder. Tudo indica que o pragmatismo o terá levado, contudo, a considerar que o risco de provocar um abalo constitucional, pela reintrodução da Monarquia, era grande. Por isso, no único momento da vida do Estado Novo em que a questão se colocou de forma mais clara para alguns setores do regime - aquando da morte do presidente Carmona, em 1951 -, optou por afastar em definitivo a possibilidade de uma restauração monárquica.

Curiosamente, seria Marcelo Caetano, que havia sido um propagandista monárquico, a titular essa sua posição, no Congresso da União Nacional então realizado. Verdadeiramente, a hipótese de restauração da Monarquia portuguesa morreu aí, em termos de exequibilidade.

Essa atitude de Salazar, que foi muito sentida no campo monárquico, o qual, contudo, maioritariamente nunca dele se afastou, viria a abrir caminho à progressiva gestação de uma linha monárquica democrática contra o Estado Novo.

Entretanto, Salazar, depois de ter tido diversos gestos de simpatia para com a mãe do último rei, e em jeito de compensação, autorizou a que o representante da família Bragança regressasse a Portugal, de onde esse ramo fora banido pela República.

O seu descendente, dom Duarte, dito "duque de Bragança" (os títulos nobiliárquicos foram abolidos por lei, logo em 1910, e só subsistem hoje nos círculos saudosistas da Monarquia e por cortesia social que alguns entendem dever manter) é filho dessa figura, de dom Duarte Nuno, do ramo miguelista dos Bragança, nascido na Áustria e que sempre falou mal português (o que, há quem diga, terá sido um argumento mais para justificar a sua não consideração como potencial rei).

Leio hoje na imprensa que um grupo de monárquicos e outras pessoas que, não o sendo necessariamente, a eles se associaram, pretende institucionalizar na lei um lugar protocolar para o representante da família Bragança.

Ao atual representante dessa família, reconhecido pela esmagadora maioria dos monárquicos portugueses (embora não por todos) como a pessoa que, numa hipotética restauração da Monarquia, poderia vir a assumir o trono, tem vindo a ser concedida alguma atenção e a atribuição informal de lugares protocolares, em cerimónias oficiais, facto que, não raramente, provocou reações de desagrado por parte de titulares de cargos da República, confrontados com exageros cometidos nessa discricionariedade casuística.

São sempre decisões "ad hoc", regidas pelas regras da educação e do bom-senso (e às vezes, da falta dele) e, não vale a pena escondê-lo, pela curiosa circunstância de, creio que quase sem exceção, a chefia do Protocolo de Estado, numa divertida e nunca assumida "conspiração", ser quase sempre confiada a diplomatas com propensão monárquica. A regra, contudo, já consuetudinariamente consagrada, tem sido convidar dom Duarte para muitas cerimónias, variando apenas o lugar que lhe é atribuído.

O leitor deve estar a estranhar a palavra "perdigões" no título deste texto. Eu explico.

Ainda ao tempo do Estado Novo, a expressão era utilizada no Protocolo de Estado para designar aquele género de figuras para as quais, não existindo um lugar automático na lista oficial de personalidades, com hierarquia protocolar entre si, havia que "encaixar", em especial nos banquetes e em certas cerimónias de natureza oficial ou semi-oficial. Esse é um problema permanente com que ainda hoje o Protocolo de Estado se defronta, face à frequente delicadeza que decorre das decisões que é obrigado a assumir neste domínio.

Num certo tempo do "marcelismo" dos anos 70, a esse tipo de figuras, cartas "fora do baralho" protocolar, alguém passou a dar a designação de "perdigões". Porquê? Porque Azeredo Perdigão, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, era uma das recorrentes personalidades desse género, para as quais sempre era importante encontrar um lugar protocolar, à luz do bom-senso.

De certo modo, o que a iniciativa dos monárquicos pretende evitar é que dom Duarte continue a ser um "perdigão" protocolar e que, de caminho, a importância da sua família para a História de Portugal seja reconhecida de forma oficial nas cadeiras das cerimónias - já que o assento no trono já lá vai há muito.

Um século passado sobre o fim da Monarquia e quase meio século decorrido sobre o termo ao banimento, num gesto de grandeza histórica por parte da nossa República, que decorre da constatação objetiva da inocuidade política atual do herdeiro da família Bragança, acomodando o gosto que isso pode dar aos ainda crentes caseiros na fé monárquica, não me chocaria* que o protocolo da República se livrasse de um "perdigão" e desse um lugar, sem exageros nem excessos, ao primogénito da família que, entre 1640 e 1910, se sentou no trono português. E escrevo isto como "feroz" republicano que sou.

* (escrevi "não me chocaria". Espero que alguns plumitivos que só sabem ler "as gordas" não venham dizer que faço parte dos proponentes da solução)

segunda-feira, março 20, 2017

Rockfeller

A morte, hoje, do milionário David Rockfeller, aos 101 anos, trouxe-me à memória um episódio ocorrido numa viagem de Mário Soares a Nova Iorque, nos anos 70. Foi-me contado, não há muito tempo, por alguém que acompanhou Soares a um encontro com uma figura, já bastante idosa, também da família Rockfeller. 

Na altura, Mário Soares procurava concitar apoio a Portugal por parte de entidades do setor financeiro americano, tendo em atenção o prestígio que criara como figura de credenciais democráticas, no Portugal ainda algo convulso desses tempos. O Rockfeller milionário com quem então se encontrou é que, muito provavelmente, tinha um escasso conhecimento da História recente de Portugal, pelo que talvez não tivesse sido a pessoa mais adequada...

Nessa reunião, Mário Soares explanou as suas razões, devidamente traduzido para inglês por um colaborador. O seu interlocutor parecia um pouco "aloof", mas quem o acompanhava tomava as necessárias notas, pelo que a utilidade do encontro parecia assegurada. No final, o idoso Rockfeller disse umas palavras de circunstância e a reunião terminou. Quando ambos tinham acabado de se cumprimentar, o americano "deixou cair", em jeito de derradeira mensagem: "My best regards to doctor Salazar". 

Soares só ouviu a última palavra e perguntou, já na porta, para um dos integrantes da delegação: "Ele disse qualquer coisa, no fim, sobre Salazar. O que é que foi ?". "Não foi nada de importante...", retorquiu-lhe o colaborador.

quarta-feira, março 01, 2017

Diplomata de Abril

«Nada mata mais um escritor do que obrigá-lo a representar um país», disse um dia Julio Cortázar, citado por José Fernandes Fafe nas «Conversas durante anos» (Almedina 2002) que António Silva com ele teve. Não para concordar necessariamente com a asserção, mas para questionar ironicamente essa dicotomia nem sempre fácil de assumir. Na limitada abertura a quadros exteriores à carreira diplomática tradicional, que o poder democrático subsequente à ditadura decidiu levar a cabo a partir de 1974, José Fernandes Fafe, ao lado de Coimbra Martins, Álvaro Guerra e José Cutileiro, figura entre as personalidades oriundas da área cultural que vieram a ser escolhidas.

Ser o nosso novo homem em Havana foi o desafio que Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, lhe lançou, quem sabe se lembrado de uma viagem clandestina que ambos haviam feito à ilha de Fidel, em meados dos anos 60. Fafe partilhava, há muito, uma sedução geracional pela revolta que havia deposto Baptista. Uma simpatia que tinha menos de ideológico – Fafe era um socialista moderado, com um pendor liberal – e bastante mais de romântico. Ele fora «David Alport», o pseudónimo com que assinou, para escapar ao crivo da ditadura portuguesa, aquela que é hoje considerada uma das primeiras biografias de Che Guevara. 

O novo embaixador beneficiava da boa vontade política junto do regime cubano, num tempo em que alguns militares e outras figuras da Revolução portuguesa se deliciavam em romagens à terra dos heróis do «Granma». A memória das Necessidades guarda a ideia de que a densidade objetiva das nossas relações com Cuba estava, à época, algo aquém daquilo que uma figura com o prestígio e os excelentes contactos de Fernandes Fafe poderia ter proporcionado

Daí que, para essa memória coletiva da nossa ação externa, o seu posto seguinte, o México, se tenha consagrado como um ponto particularmente alto – eu diria, na perspetiva de um profissional da casa, aquele que o tornou verdadeiramente «one of us». A profunda interação cultural que aí conseguiu levar a cabo, com presença constante na imprensa e nos meios da cultura, viria a ser muito marcante, num  país onde a imagem das ditaduras ibéricas permanecia ainda forte, com culturas de exílio a misturarem-se com os novos tempos. Mas seria ainda no México que Fernandes Fafe se iria «libertar» do estigma redutor que, um pouco por todo o mundo, sempre persegue as figuras da cultura convertidas à diplomacia: no forte impulso que deu às relações económicas bilaterais, nomeadamente aquando da sensível questão do abastecimento petrolífero a Portugal, as «esporas» de um embaixador completo viriam a assentar definitivamente a Fernandes Fafe.

Mas a cultura, com naturalidade, regressaria ao seu horizonte. Por um par de anos, o papel de embaixador itinerante para esse domínio caiu-lhe que nem uma luva. Diga-se que, com o brasileiro Celso Cunha e Lindley Cintra, Fernandes Fafe foi então um dos autores de um estudo sobre uma estratégia para a Lingua Portuguesa que ainda hoje ganharia em ser revisitado. Foi, aliás, nessa qualidade que o cruzei pela primeira vez, ao tempo em que eu próprio era diplomata em Angola.

Acabaria por ser também um país de lusófono, Cabo Verde, o seu terceiro posto de destino. Um país onde trabalhou muito e bem, como todos reconhecem. Cultura e economia foram pontos fortes dessa sua ação, marcada também pela dinamização do apoio às várias instituições do país, através das estruturas congéneres portuguesas. O êxito atual de Cabo Verde, o seu papel de «benchmark» para a África, rima muito com essa sua linha de trabalho.

A carreira de Fernandes Fafe viria a reencontrar a América Latina naquele que seria o seu último posto: Buenos Aires. Um desafio aos 63 anos, numa embaixada onde teria, contudo, um mandato curto. Dois anos depois, como mandava a lei, regressava a Lisboa.

José Fernandes Fafe foi um diplomata de abril, uma figura que levou o seu prestígio intelectual para as estruturas da política externa portuguesa. Serviu o país com brilho, empenhamento e qualidade. O seu desaparecimento, aos 90 anos, é um momento triste para a nossa diplomacia.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Letras")

sábado, fevereiro 18, 2017

Pedro Leite de Noronha


Hoje, em mais um excelente artigo no "Diário de Notícias", Ana Sousa Dias fala das "cartas ao diretor" dos jornais, revelando o "segredo" de que, no passado, na ausência dessa correspondência, era aos próprios jornalistas que era pedido que "inventassem" textos para encher esse espaço.

Vou repetir uma história (que já uma vez aqui contei) de uma dessas cartas, de que eu próprio fui autor, embora sob pseudónimo - e logo perceberão porquê.

Nem sempre os funcionários diplomáticos portugueses foram sindicalizados. Quando entrei para a profissão, em 1975, não havia nenhuma estrutura sindical representativa dos diplomatas. Um dia, creio que dois ou três anos mais tarde, foi criada uma Associação dos Diplomatas Portugueses. Por algum radicalismo que à época partilhava, decidi não entrar como associado dessa estrutura, por não ver a palavra "sindical" incluída no respetivo nome, condição de representatividade que achava indispensável. Cheguei mesmo ao ponto de mobilizar um grupo de jovens colegas como forma de tentar obstruir essa iniciativa, que considerava "recuada" e pouco ousada.

Mais tarde, nos anos 80, as coisas mudaram e foi, finalmente, criada a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses. Dela cheguei a ser vice-presidente, nos anos 90 e, nos últimos dois anos, fui presidente da respetiva Assembleia Geral. Alguns colegas mais antigos não apreciaram a mudança registada e reagiram fortemente à dimensão sindical da nova Associação.

Porque o tema dos diplomatas terem um sindicato era verdadeiramente novo e o "Expresso", por discreta sugestão de alguns de nós, tinha trazido uma notícia sobre o assunto, tive a ideia de escrever uma carta ao respetivo diretor, em nome do "ministro plenipotenciário Pedro Leite de Noronha", na falsa qualidade de um dos contestatários do novo sindicato. Nessa carta, escrita num tom snobe, expressava o "desgosto" por ver os diplomatas do MNE "banalizarem-se" e enveredarem "tristemente" pela via sindical, trazendo a público questões que, no passado, eram sempre resolvidas "entre os claustros e a tapada" das Necessidades. O "Pedro Leite de Noronha" ia mais longe e considerava que o facto dos diplomatas andarem a colocar "nas bocas públicas do mundo" as peculiaridades da sua vida profissional refletia, muito simplesmente, "o facto do nível social do seu recrutamento ter baixado", fruto dos "lamentáveis ventos de abril", de terem "deixado, na sua maioria, de possuir fortuna própria", o que os tornava "permeáveis às pulsões materiais da vida".

Nos dias subsequentes à publicação da carta, os comentários sobre a mesma motivaram muitas conversas "entre os claustros e a tapada", muito embora ninguém alimentasse a menor dúvida sobre a não autenticidade do texto, porque não havia, nos quadros do ministério, nenhum "Pedro Leite de Noronha". Procurei que o nome tivesse um toque onomástico suficientemente "bem" para poder abrir caminho à sua credibilização em áreas para fora da "casa". E todos perceberam que o absurdo do argumentário da carta mais não era de que uma forma de ridicularizar o reacionarismo primário de quantos se opunham à ação da nova associação sindical.

Só tempos depois vim a saber que, por essa altura, numa embaixada portuguesa numa importante capital europeia, por onde curiosamente eu viria a passar alguns anos mais tarde, o embaixador comentara o assunto com uma colega (hoje também já embaixadora) com uma observação do género: "É evidente que este nome é falso: não temos nenhum colega que se chame assim. Mas que ele tem bastante razão, lá isso tem!"

quinta-feira, fevereiro 16, 2017

A sala dos embaixadores

Já lá não ia há alguns meses, à Sala dos Embaixadores, uma bela dependência adjacente ao gabinete do Ministro dos Negócios Estrangeiros, com uma excelente vista para a Tapada das Necessidades, onde são recebidos visitantes e delegações.

Dei ontem por mim a pensar nas várias circunstâncias em que por ali estive, de cenas de que fui testemunha à volta daquela bela mesa de mármore.

Fixei bem a primeira vez, creio que em 1976, numa reunião com Melo Antunes, quando uma comissão encarregada das relações com os países árabes, presidida pelo eng° Torres Campos, foi dar conta da sua atividade ao ministro. Torres Campos apresentou cada membro da delegação mas, por lapso, esqueceu-se de mencionar o seu chefe de gabinete. Melo Antunes inquiriu: "E aquele senhor ao fundo, quem é?". Embaraçado, o presidente da comissão explicou que se tratava do eng° António Guterres...

Recordei-me depois, entre inúmeros episódios nessa sala, da estupefação de um ministro de um país dependente da cultura da banana perante um seu homólogo português que cuidava em "explicar-lhe" como funcionava a economia do produto à escala global. Veio-me também à memória uma cena tensa, com uma delegação estrangeira a levantar-se, ofendida, a meio de uma reunião, por uma descuidada frase de um governante português, connosco a persegui-los pelo corredor, convencendo-os a regressar à mesa negocial. Por ali fui testemunha de hábeis conversas que ajudaram a mudar posições de outros Estados que caminhavam em nosso desfavor, bem como de horas de "langue de bois" diplomática, a "encher pneus", com ambas as partes a gastar tempo em conversa "de chacha", para preencher calendário, em visitas formais e sem agenda substantiva. Foi nessa sala que um dirigente africano, a quem um ministro português paternalisticamente recomendava uma maior parcimónia aos governantes do seu país no uso dos dinheiros públicos, perguntou se ele seria capaz de viver se tivesse, como ele, um salário oficial de 25 dólares por mês. E, também por ali, ouvi ou participei em discussões muito interessantes, produtivas, bem como assisti, fascinado, a intervenções de grandes personalidades, figuras que marcaram a história diplomática internacional. Naquela sala aprendi muito, até nos erros que vi cometer.

Vi naquela sala um pouco de tudo, da parte de muitos dos 21 ministros dos Negócios Estrangeiros com quem trabalhei ao longo de quase quatro décadas: uns extraordinariamente competentes, outros embaraçosamente inábeis, embora todos - tenho de reconhecer - cada um à sua maneira, procurando atuar o melhor possível em nome dos interesses do país.

Num recorte de jornal que guardo não sei onde, vejo-me naquela sala, de pé, no final dos anos 70, abrindo a pasta de um acordo a ser assinado por um ministro ou diretor-geral. Ali estou eu, nessa fotografia, fácies grave, com um inapropriado blazer de inenarráveis quadrados, uma bigodaça farfalhuda e um imenso cabelame, típico da época. Belos tempos? Não, apenas outros tempos.

segunda-feira, fevereiro 06, 2017

"One point up..."

Lembrei-me dele hoje, ao ler, na imprensa americana, um perfil de Trump. Nele se diz que, com convicção ou por mera posição tática, o novo presidente americano, naquela sua arrogância sem limites, quer estar sempre numa posição de força, nunca revelar a menor fraqueza.

Foi aí que me lembrei dele, desse amigo bizarro que tive (e que já morreu há muito). Um dia, vi-o chegar muito pálido e perguntei-lhe se se sentia bem. Não obstante ser por demais evidente que estava com problemas de saúde, disse-me: "Estou lindamente, sinto-me mesmo muito bem", caindo depois, numa evidente exaustão, sobre um sofá. Calei-me. A diferença de idades e a falta de confiança não me permitiam desmontar aquele teatro. 

Passaram uns tempos e os papéis inverteram-se. Eu estava com uma imensa dor de cabeça, talvez mesmo febril, e referi, em frente a ele, que me me sentia pessimamente. Com um sorriso, num argumentário que casava bem com a sua atitude anterior, ele então sentenciou: "Nunca diga isso! Nunca deixe transparecer perante outra pessoa que tem uma fragilidade, em especial de saúde. É que essa pessoa, muito provavelmente, sente-se normal, está sem padecimentos, o que imediatamente o inferioriza a si. Porque, ao pressentir que você tem um problema, ele sente-se logo superior. E nós, nas nossas relações humanas, temos de fazer um esforço para estar sempre acima dos outros". E concluiu com uma máxima em inglês que, embora profundamente pateta, nunca mais esqueci: "If you are not one point up, you are one point down". Este meu amigo, cujas "teorias" (e tinha outras) o não levaram muito longe na vida, nem sequer era má pessoa. 

Foi preciso viver a experiência de Trump para me lembrar desta máxima. É que há mesmo gente assim...

Ainda Caminha

Foi um par de horas de conversa, na tarde de sábado, na Biblioteca Municipal de Caminha, tendo como anfitriã a vereadora da Educação, dra. L...